Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo
Universidade de Colonia
ANAIS BRASIL-EUROPA
ESTUDOS CULTURAIS E MUSICOLOGIA EM CONTEXTOS GLOBAIS
ETNOMUSICOLOGIA
FACULDADE DE MÚSICA E EDUCAÇÃO MUSICAL DO
INSTITUTO MUSICAL DE SÃO PAULO
PELOS 70 ANOS DE ARAMM KHACHATURIAN (1903-1978)
RECAPITULANDO ESTUDOS DE
SYLVIA RIBEIRO KASSARDJIAN
1973
Tradições armênias na Etnomusicologia em São Paulo - Aculturação na Etnomusicologia - Tradições e mudanças culturais - Permanências de tradições armênias - Questões metodológicas e de redação - Ritos nupciais armênios na imigração - Cantos registrados e comentados: Kess qui li Janpan, Ambigar, Hamparthssun, Arguilê, Lugin Tigar
Tradições armênias em São Paulo foi tema de curso de Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical/Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1973. Esses estudos foram motivados pela celebração dos 70 anos do compositor Aram Khachaturian (1903-1978), compositor de renome internacional, que esteve no Brasil e cujas obras eram frequentemente executadas em concertos.
A presença de estudantes armênios em cursos de Etnomusicologia favoreceu a consideração mais atenta da colonia armênia em estudos voltados a processos culturais de imigrantes, a processos integrativos, de adaptação e assimilação, a mudanças culturais, à permanência de expressões tradicionais, ao cultivo da música tradicional armênia e à adoção de tendências da música popular brasileira e internacional. Os estudos puderam contar com a experiência e a visão interna de estudantes armênios pertencentes à comunidade. Os trabalhos realizados serviram também à tomada de consciência das próprias pesquisadores quanto a seus condicionamentos culturais.
Aculturação na Etnomusicologia
São Paulo é uma metrópole marcada pela vinda de imigrantes das mais diversas proveniências. Os estudos culturais não podem deixar de considerar essa diversidade e os processos integrativos, de adaptação, assimilação, assim como também os de afirmação de identidade e de elos com os países de origens através da conservação de modos de vida e expressões culturais. Os processos vivenciados pelos diferentes grupos, nas suas interações, marca a fisionomia, a vida social e cultural de bairros e da cidade no seu todo. Neles, a música desempenha sempre um papel relevante, muitas vezes condutor de desenvolvimentos. Correspondendo à diversidade de proveniências, épocas da vinda ao Brasil e razões que levaram à emigração, os desenvolvimentos apresentam características próprias que devem ser consideradas nos estudos imigratórios. Nesses estudos, nem todos os grupos têm recebido a mesma atenção.
Entre aqueles imigrantes que até a década de setenta pouco tinham sido considerados nos estudos culturais, encontravam-se os armênios. A orientação segundo processos preconizada pelo movimento Nova Difusão e o seu Centro de Pesquisas em Musicologia levou ao interesse por questões concernentes a mudanças culturais nos diferentes grupos, correspondendo ao conceito de Aculturação que recebia especial atenção nos estudos sociológicos.
Em nível superior, a aculturação de grupos de imigrantes sob o aspecto da música foi tema tratado com atenção na área da Etnomusicologia então instituída em cursos de Licenciatura em Educação Musical da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo. Na formação de educadores, estes deveriam receber no âmbito da Etnomusicologia conhecimentos básicos que os colocassem em situação de reconhecer e valorizar bens culturais na diversidade da complexa sociedade metropolitana e que se refletia nas salas de aula. Através de pesquisas de campo do seu próprio meio de vida e de trabalho, os educadores deviam ter a sua sensibilidade aguçada para análises do próprio condicionamento cultural e daquele de seu meio e dos educandos.
Tradições e mudanças culturais
Nos estudos concernentes a processos sócio-culturais vivenciados pelos imigrantes em São Paulo, a atenção dirigia-se às mudanças de modos de vida, de sentir e pensar, de idioma, de hábitos, de assimilação de expressões culturais da sociedade receptora, de música, dança e costumes festivos, à perda de elos e tradições. Essa perspectiva correspondia àquela que partia de gradativo amalgamento de grupos de imigrantes com o contexto sócio-cultural predominante através de contatos, do ensino e da ação e meios de comunicação. As expressões culturais desses imigrantes perder-se-iam no decorrer das gerações, o que correspondia também às expectativas e aos ideais político-culturais de integração numa unidade da cultura nacional.
No âmbito dos estudos do Folclore, compreendido como Folclore Nacional, danças, música, trajes, representações e outros aspectos da cultura dos imigrantens estariam fadados a esse desaparecimento gradativo. O seu estudo diria respeito a situações temporárias em processo integrativo e o seu estudo diria respeito a um folclore estrangeiro, residual e temporário no Brasil. No debate conduzido na década de 60, tomou-se consciência que essa acepção não podia ser generalizada. Constatava-se em diferentes contextos da imigração, tendências, esforços e movimentos de conservação e mesmo reatamento e revivificação de expressões tradicionais e de consciência de origens.
A manutenção, o cultivo, o uso e a apresentação de elementos e expressões próprias dos grupos não eram resultados de esforços apenas da geração dos primeiros imigrantes, expressões de nostalgia e saudades da terra natal. Também gerações já nascidas no Brasil praticavam danças, música e apresentavam-se em trajes tradicionais de regiões de origem. As apresentações em público, em geral em festivais de folclore, não tinham apenas um sentido ilustrativo e de divulgação. Revelavam complexos processos em andamento dentro dos próprios grupos. Não eram temporários, marcando a imagem de cidades e regiões, como era evidenciado naquelas de origem alemã ou centro-européia em geral.
A atenção dirigida à diversidade cultural, necessária ao estudo adequado em contextos sócio-culturais marcados pela imigração, como em São Paulo, exigia estudos dessas expressões, forças e movimentos de permanência e mesmo fortalecimento de expressões tradicionais de origem nos diferentes grupos de imigrantes. Tornava-se necessário analisar processos internos em andamento, relações entre expressões locais, regionais e aquelas consideradas como nacionais, relações entre diversidade e unidade que se apresentavam sob diferentes formas nos respectivos grupos.
Expressões assumidas ou apresentadas como próprias de uma determinada região do contexto de origem eram subsumidas numa cultura nacional. Trajes, danças e música do Minho, da Beira, do Alentejo, eram praticadas como representativas de Portugal. Grupos da Silésia, da Baviera, da Saxônia ou de outras regiões de língua alemã, cultivavam expressões como representativas da Alemanha, sem maiores considerações de mudanças de fronteiras e de origens migratórias no decorrer de processos históricos.
Diferenças regionais, até mesmo tensões, passavam a ser niveladas no Exterior, favorecendo aproximações e uma integração interna quanto às relações com a própria terra natal ou de proveniência de antepassados. Essa complexidade agravava-se em casos em que a vinda de imigrantes ocorrera em diferentes épocas e sobretudo através de passagens por outros países no decorrer do caminho de fugas ou exílios.Seria tarefa dos pesquisadores - e educadores - analisar em cada caso a situação peculiar dos processos em andamento.
Permanência de tradições armênias
Um dos casos estudados quanto a processos internos de permanência, reforçamento e continuidade de práticas e expressões tradicionais em grupos de imigrantes, foi o da comunidade armênia em São Paulo. O estudo de processos internos da comunidade armênia devia considerar os diferentes contextos sócio-culturais vivenciados pelos armênios que, passando por países como a Síria e o Líbano, vieram a seguir para o Brasil. Devia-se considerar como os diferentes usos e costumes adquiridos nessas estações de vida interagiram com aqueles de outros grupos, favorecendo um complexo todo que então passava a interagir com o da sociedade brasileira receptora.
Um outro problema dizia respeito à posição do pesquisador. Se este pertencia à comunidade armênia, seria êle próprio marcado por esses processos internos, sendo a sua perspectiva uma outra daquela de pesquisadores externos. Uma brasileira casada com armênio e que aprendia elementos da línguga modos de pensar, ver e agir, assim como tradições armênias, encontrava-se em outra situação para a compreensão dos processos internos ao grupo.
Os trabalhos desenvolvidos na área da Etnomusicologia em cursos de Licenciatura em Educação Musical foram marcados por esta última situação do pesquisador, por uma aproximação nem êmica, nem completamente ética.
Questões metodológicas e de redação
A pesquisa sobre tradições armênias na imigração foi conduzida por Sylvia Ribeiro Kassardjian em cooperação com Sonia Ekizian Cherkezian. No seu trabalho, a pesquisadora optou na sua introdução por um procedimento literário no tratamento do tema, deixando que a própria entrevistada - Júlia Kassardjian - contasse a sua experiência em viagem a um casamento armênio em subúrbio de São Paulo. Nesse procedimento, seguia uma prática difundida no seu meio, a fim de emprestar mais interesse ao texto. Esse intento, contrariando convenções acadêmicas atuais, não foi desconhecido no Ocidente, tendo etnólogos de renome assim procedido no passado. Pensava-se antes no leitor, procurando-se despertar interesses e ganhar simpatias.
A literatura mais antiga utilizada nos estudos etnológicos é marcada por publicações assim surgidas, em geral relatos de viagens, não podendo porém dispensar a sua consideração. Essa problemática revela-se sobretudo no Brasil, uma vez que o pesquisador cultural se defronta com textos mais antigos romanceados ou jornalísticos, escritos por viajantes, aventureiros, exploradores ou turistas, mas que oferecem informações de interesse e significado.
A leitura desses textos exigem perspectivas adequadas e análises. O estudo da própria pesquisa, do pesquisador, de seus procedimentos e registro textual do vivenciado nas suas inserções em desenvolvimentos epocais e sociais relaciona-se com a própria pesquisa cultural. O trabalho apresentado sobre tradições armênios motivou a discussão dessa problemática da pesquisa etnológica, da pesquisa empírica em geral e, em particular, a etnomusicológica.
Ritos nupciais armênios na imigração
Júlia Kassardjian relata a sua viagem de trem de terceira classe na companhia de algumas mulheres de origem armênia, residentes há muito no Brasil. Estas, com cruzes ricamente encrustadas, com os dizeres fé e riqueza,conversavam sobre o casamento armênio. Para os armênios, na vida, ao lado da fé, o possuir riqueza e o casar o filho ou filha o mais depressa possível seriam de primeira importância.
Casada com armênio, aprendera o idioma e adotara seus costumes, assimilando uma atitude modo de ver o mundo marcados por alegria apesar da vida no exílio.
Nas casas onde se realizava a festa, reinava grande alegria e animação, estando o interior decorado de forma colorida. Uma senhora tomou-a como sob a sua tutela na festa e passou a dar informações pormenorizadas dos costumes e sentidos. Segundo ela, o casamento do rico como o do pobre cumpre as mesmas tradições da pátria distante, diferindo somente na qualidade e quantidade dos enxováis.
A menina, quando completa 10 anos de idade, começa a fazer o seu enxoval com carinho e cuidado. A festa tem a duração de cinco ou dez dias, conforme as posses dos pais do noivo, pois são êles que promovem os festejos nupciais. No ínicio há o pedido de casamento, cujas partes já haviam sido sondadas pelas velhas casamenteiras em reuniões solenes e sigilosas. Ambas as partes estando de acordo, combina-se o dia do encontro entre os pretendentes. Se há um agrado recíproco, os pais e as velhas casamenteiras consideram-se bem sucedidos. O dia do noivado é marcado para dentro de um mês, mais ou menos.
O dia do noivado consiste em grande festa, sendo abençoadas as alianças, com muita reza e catos. A noiva rtecebe presentes em jóias por parte dos futuros sogros. A fase do noivado não é muito longa, havendo sempre trocas de banquetes entre as famílias. O novo não precisa preocupar-se muito com as finanças, pois o pai é quem delas se responsabiliza. Moram juntos, trabalham juntos e se enriquecem juntos. Próximo ao dia do enlace, a família da moça apresenta o enxoval, o que transcorre em ambiente de grande felicidade, com canções saudosistas, entremeadas com algumas brejeiras
Cantos registrados e comentados
Kess qui li Janpan
A pesquisa musical foi realizada em entrevista com Maritza Tarpinian, que a entoou, sendo traduzida e grafada pela pesquisadora. A mesma canção foi interpretada por Margarida Chofekian e por Azaduhie Samuelian.
As pessoas convidadas chegam desde as primeiras horas da manhã até a noite. No dia seguinte, tudo é recolhido em grandes malas e, em dia marcado da mesma semana, a família da noiva leva as malas para a casa dos pais do noive, onde vão residir depois de casados. Seguem assim o costume da antiga Armênia. A família da noiva tem a liberdade de arrumar o enxoval, colocando perfumes, bombons e balas nas gavetas e por toda a parte, para que a lua de mel seja realmente bem doce. Arrumado o leito conjugal com grande esmero, é jogado no mesmo um menino como augúrio para que a criança que venha a nascer seja um menino sadio. O primogênito deve ser preferencialmente varão.
Na véspera das núpcias, acontece o cerimonial do banho. Se a família é de posses, o cerimonial é feito nos banhos turcos. A noiva é levada por uma comitiva feminina composta pelas madrinhas, tias, primas, irmãs e amigas. Levam sais de banho, finas roupas e balas de amêndoas cobertas de açúcar, semente de abóbora e outras guloseimas. Aqui também não faltam canções brejeiras e jocosas. Em casa, à noite, se realiza a pintura das unhas ou mãos. Na Armênia, como no Líbano, utiliza-se a planta ghanan, da qual se extrai uma tinta vermelha. Isso se processa entre cânticos e danças. Às vezes passa-se a tinta nas palmas das mãos. A pele engrossada pela pintura significa que a noiva se despede da vida de solteira, passando a responsabilizar-se pelos árduos trabalhos de dona de casa. Se o noivo for de posses, somente as unhas serão pintadas. Nesta cerimônia, nunca faltam músicas e danças, ao lado de licores e bombons.
Ambigar
A pesquisadora gravou, traduziu e transcreveu o canto Ambigar (Sob as nuvens da solidão).
No dia do casamento, os membros da família reunem-se e, depois do desjejum, passam em grande movimentação aos preparativos. Os vestidos novos, brilhantes, custosos e bordados são tirados das malas. As mulheres que eram da parte do noivo, trazem o vestido da noiva e adereços. As mulheres entram no recinto onde a noiva se encontra entoando uma canção triste, dansando e batendo palmas.
Hamparthssun
No ato observado, a noiva manifestava uma saudade pungente, mesclada de alegria conformista. Esse canto - Hamparthssun (Menina de sorte), foi traduzido e grafado pela pesquisadora. Foi informada que esta canção era cantada no dia de Hamprthssun, significando festa na montanha. Os armênios costumavam ir a essa montanha em dia de primavera em espécie de convescote. Lá cantavam, dançavam, comiam e tiravam a sorte das moças, das pessoas que iam fazer uma viagem ou que esperavam correspondências. Era um dia muito festivo e por isso nos casamentos era a primeira canção a ser entoada.
Arguilê
Em torno da noiva reunem-se as mulheres. A cada peça colocada na noiva, cantam e batem palmas. As danças, para a pesquisadora, constistem num balanço de lá para cá, enquanto o pé direito se ergue para cima, o esquerdo bate no chão. A que ficar na primeira ponta do círculo empunha com a mão direita um laço, lenço, que é agitado no ar, sempre acompanhando o rítmo.
Arguilê é a canção que surge como apropriada para essa dança (Meu amor, meu amor). A pesquisador ouviu-a em várias versões e procurou compará-las, após tê-las transcrito.
O momento de colocar o véu e a grinalda é chamado o pai da moça ou o irmão mais velho ou um tio, que toma o véu, ergue-o e dá três voltas em círculo, proferindo: che-nór-ahvor-elá.
Os padrinhos são escolhidos pelo noivo e devem ser de preferência os mesmos do batismo. Um aspecto que chamou a atenção da pesquisadora foi o fato da noiva não falar durante todo o cerimonial, apenas sorrindo, de quando em quando. Segundo as informações recebidas, seria um traço da sabedoria oriental. Devido à presença da futura sogra, a noiva não falaria Seria indecente a nora emitir opiniões na presença dos futuros sogros. Somente após o nascimento do primeiro filho é que poderia conversar livremente. Evitar-se-ia assim conflitos entre nora e sogra.
As festividades na casa do noivo são também observadas e descritas pela pesquisadora. Não só êle como outros homens presentes são barbeados à custa do noivo. As roupas são entregues em jogo do dar e não dar, daquele que faz que vai entregar, mas não entrrega. Essas brincadeiras levam horas.
Lugin Tigar
Os convidados da parte do noivo vão à residência da noiva para levá-la ao altar. No trajeto, cantam a marcha patriótica Lugin Tigar. Esta foi traduzida para o português pela pesquisadora e analisada no seu conteúdo. Para ela, essa marcha correspondia a uma atmosfera de guerra, como se o cortejo ruidoso e alegre fosse um batalhão de nobres guerreiros.
A porta da residência da noiva é fechada de repente, dando início a desafio entre as duas famílias. Os padrinhos lançam um grito de guerra. Do outro lado, uma pessoa responsável pela noiva se coloca na janela semi-aberta e responde ao desafio. Exige-se que os padrinhos dancem até que a porta se abra. Os noivos entram no carro que os leva ao templo ortodoxo local, ou, mais raramente, à igreja católica ou evangélica. Terminada a cerimônia, é oferecido aos nubentes e aos padrinhos e parentes vinho, ato acompanhado por oração e cantado pelo coro da igreja. Ao chegarem à porta da casa, é imolado um cordeiro e ambos pulam por cima do animal, sem tocá-lo. A festa é muito animada, com muita música, algumas mais antigas, outras mais recentes, de conteúdo brejeiros, saudosistas ou patrióticos. As danças, com o regar do vinho, se tornam em contorsões e saltos, acompanhados por palmeados.
(…)