Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo
Universidade de Colonia
ANAIS BRASIL-EUROPA
ESTUDOS CULTURAIS E MUSICOLOGIA EM CONTEXTOS GLOBAIS
ETNOMUSICOLOGIA URBANA
FACULDADE DE MÚSICA E EDUCAÇÃO MUSICAL DO
INSTITUTO MUSICAL DE SÃO PAULO
RECAPITULANDO ESTUDOS DE
ZILDETTI MONTIEL
1973
Poluição acústica, sinais, sonoridades urbanas e Etnomusicologia - Atualidade do tema - Poluição e acústica de espaços - Poluição acústica, pesquisa de bairros e música - Poluição acústica e Educação Musical - Poluição acústica e Etnomusicologia Urbana - Estudos culturais do quotidiano - Poluição do ar, acústica e psique - Estudos de sinais: matracas e buzinas
Poluição acústica e sinais sonoros foi um dos tópicos da temática sonoridades urbanas tratada no âmbito de estudos históricos e etnomusicológicos da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972/73. Foi considerado no curso Música na Evolução Urbana de São Paulo e na área da Etnomusicologia, conduzida então sobretudo sob o aspecto de uma Etnomusicologia Urbana.
É significativo recapitular reflexões então encetadas e os estudos realizados, uma vez que tiveram tiveram continuidade nas décadas que se seguiram e marcaram estudos desenvolvidos em contextos internacionais. Foram sob vários aspectos pioneiros e contribuiram ao desenvolvimento de uma musicologia conduzida segundo processos culturais em contextos globais e, reciprocamente, de estudos culturais de condução musicológica.
Atualidade do tema
A poluição acústica em grandes metrópoles foi problema que se impôs e foi discutido sob diferentes aspectos em São Paulo nas décadas de 1960 e 1970. O barulho causado pelo aumento do trânsito, por bondes, ônibus, caminhões e automóveis, por buzinas, por obras de construção de edifícios e de consertos e aberturas de ruas, de implantação de linhas do metrô, de fábricas e de muitas outras fontes e agentes de ruídos passou a ser intensamente sentido e compreendido quanto a seus efeitos negativos sobre a qualidade de vida e de degradação de uso e vivência de espaços. Auditórios teatros e igrejas permeadas pelo barulho vindos das ruas foram prejudicadas quanto às suas funções. Os ruídos impediam a concentração em celebrações e concertos.
Poluição e acústica de espaços
A acústica arquitetônica, tanto de espaços internos e externos, em edifícios e ao ar livre, foi tema considerado em cursos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).Os estudos não se limitaram apenas à acústica de auditórios e teatros ou a de conchas acústicas ao ar livre, ao tratamento acústico ou isolamento de salas de concerto ou estúdios de gravações. O tratamento de questões acústicas despertaram o interesse para estudos de relações entre música, arquitetura e espaço urbano, assim como para função de sonoridades, em particular da música na percepção e vivência de espaços e, reciprocamente, de espaços na fruição da música.
Concomitantemente, discutiu-se as relações entre a poluição acústica e a visual em espaços urbanos. O fato de determinados bairros e ruas arborizadas, mais ordenados visualmente e na configuração de espaços, sem fios expostos de eletricidade, postes e cartazes serem percebidos subjetivamente como mais silenciosos do que aqueles marcados por construções desordenadas, ruas com emaranhado de fios, placas, propagandas e cartazes, deu motivo a reflexões e a estudos.
Poluição acústica, estudo cultural de bairros e música
A problemática da poluição acústica sob o ponto de vista da música em São Paulo foi tematizada no âmbito do movimento Nova Difusão e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia. A gravidade dos problemas que surgem com o aumento de tráfego e ruídos de toda ordem com o crescimento da cidade foi constatada em concertos realizados com o apoio da Secretaria de Cultura do Município no âmbito do Festival de Outono de São Paulo em 1970. Nesse evento, considerou-se a música em contextos de bairros e relações entre a música e espaços internos e externos da metrópole.
Em concerto no Salão Gomes Cardim do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, sala de extraordinário significado histórico-cultural para São Paulo, remontante ao antigo Salão Steinway, a música pouco pôde ser ouvida devido ao barulho ensurdecedor da Avenida São João. Essa situação exigiu esforços de cantores e executantes no sentido de se sobreporem acusticamente a esses ruídos. Essa exigência causou considerável perda de qualidades interpretativas e de realização, com grande desgaste para músicos e ouvintes. A música executada e os assuntos tratados em conferências perdiam em sentidos e significados A sala, apesar de seu significado arquitetônico e histórico-cultural, tornara-se inadequada para a sua finalidade.
Situação similar ocorria com o auditório do Instituto Musical de São Paulo, situado na rua dos Estudantes, na Liberdade. Essa sala, onde não só concertos eram realizados, como também tinham lugar aulas de Faculdade de Música, mostrava-se absolutamente inadequada para audições e para a concentração de estudantes, exigindo levantamento de voz de docentes, causando tensões e fatigando todos os envolvidos.
Poluição acústica e Educação Musical
Nas aulas, observou-se que o problema da poluição acústica podia ser observado em muitas escolas e marcava também o meio ambiente da maioria dos educandos. Os estudantes que já atuavam no magistério, mencionavam as dificuldades do ensino e do alcance da necessária atenção dos alunos em salas expostas ao barulho externo, advindo de ruas ou de quadras esportivas. A exitência de campos de futebol e de outros esportes destinados á educação física junto a edifícios com salas de aula foi criticada como desfavorável, sobretudo também para aulas de música. Várias áreas verdes que contornavam edifícios de escolas tinham dado lugar a áreas para esportes e ginástica.
Também aqui considerou-se relações entre a poluição acústica e a visual tratada no âmbito da Arquitetura. Escolas situadas em meio marcado pela profusão confusa de cartazes, de fios de eletricidade, de construções desordenadas, de muros e paredes pichadas, pareciam ser mais barulhentas que outras, menos propícias á concentração. Haveria reciprocamente uma relação entre o meio ambiente poluído acusticamente com uma tendência poluidora da configuração visual de espaços? Os educadores queixavam-se sobretudo de burburinhos, assobios, batucadas ou outras ações ruidosas pelos próprios educandos. Haveria uma relação entre a percepção de ruídos e sonoridades advindas do externo com esse agir de educandos que prejudicava a atenção e, em particular, aulas de música?
Poluição e Etnomusicologia urbana
A tematização desse problema pareceu ser oportuna no âmbito do curso de Etnomusicologia tal como instituída e praticada em São Paulo, marcada que foi pela sua função em cursos de formação de educadores. Na sua orientação, a Etnomusicologia implantada em 1972 nos cursos de Licenciatura procurava sensibilizar os futuros professores para a realidade sócio-cultural de educandos, para o seu meio envolvente, oferecendo para isso subsídios quanto a conhecimentos e quanto ao estado da pesquisa em diferentes contextos culturais. Foi primordialmente concebida como Etnomusicologia Urbana e voltada à pesquisa cultural do quotidiano.
Haveria uma relação entre comportamentos e ações que levavam ao barulho em sala de aula com pré-condicionamentos culturais de alunos provenientes de diferentes contextos sócio-culturais, em particular aqueles diferentes ascendências migratórias? Haveria diferenças quanto ao tipo de produção de ruídos entre descendentes de japoneses, italianos ou afro-brasileiros? Porque é que por exemplo os nísseis menos batucavam em aulas ou tomavam parte em baterias formadas espontaneamente nas pausas? Haveria outras disposições ou mesmo necessidade de silêncio e compenetração nos diferentes grupos? Por outro lado, contribuia. a participação nessas manifestações ou nas gritarias coletivas em atividades esportivas à integração de descendentes de imigrantes na sociedade predominante?
A sensibilidade de percepção dos educadores para essas diferenças parecia dever ser aguçada para uma melhor condução das aulas, que em muitos casos tornara-se quase que impraticável devido a barulhos e ruídos. Quais seriam porém os critérios para a condução de estudos que pudessem oferecer subsídios para reflexões mais fundamentadas que pudessem orientar procedimentos pragmáticos?
Estudos culturais do quotidiano
Um estudo dedicado à poluição acústica e a manifestações sonoras espontâneas ou não convencionalizadas em espaços públicos foi desenvolvido e apresentado à área de Etnomusicologia pela estudante Zildetti Montiel sob o aspecto de pesquisa cultural do quotidiano.
Na sua introdução, a pesquisadora lembrou as indecisões que teve na escolha do tema. No início, pensara em analisar sinais convencionais como os apitos de guardas, previstos nas leis de trânsito, convencionalizados, uma vez que o motorista habilitado os conhecem. Com mais reflexão, porém, preferiu tratar da problemática da poluição sonora. Como salientou introdutóriamente no seu estudo, para aqueles que vivem numa grande metrópole a poluição sonora faz parte da vida quotidiana, passa a ser o fundo sonoro, a sonoplastia do dia-a-dia.
Procurou, no seu trabalho considerar da forma mais sistematizada possível várias fontes e agentes de ruídos na grande cidade, buzinas de carros, matracas, sinos, buzinas de pipoqueiros, gritos de verdureiros, de marreteiros, de mascates, gritos característicos de vendedores com os seus carros de frutas e verduras, de roupas, sapatos, cadeiras, de carteiros, de entregas de gáz, de campaínhas de ônibus, sinais de restaurantes, de sinos e campaínhas de colégios, de hospitais, toques de telefones e de campaínhas residenciais, sirenes de ambulância, de polícia e de fábricas.
Poluição do ar, acústica e psique
A pesquisadora considerou relações entre as diferentes formas de poluição, em particular também a do ar. São Paulo, frequentemente enaltecida como metrópole que mais cresce no mundo e que não pode parar, também batia recordes nada invejáveis no tocante à poluição. O ar era mais do que visível, era palpável. Ao mesmo tempo, os níveis de poluição sonora cresciam assustadoramente, ganhando as primeiras posições entre os fatores poluentes que mais atingiam São Paulo.
Como exemplo, a pesquisadora citava o cruzamento da rua Dona Antonia de Queiroz com a Avenida da Consolação, onde o ruído chegava a nível altíssimo, obrigando moradores e sobretudo as pessoas que ali atravessavam o cruzamento a enfrentá-lo. Soluções para os problemas da poluição sonora tinham sido dificultados por uma política urbana que permitira a construção de escolas, hospitais e maternidades em zonas ruidosas, que aceitara a instalação de fábricas onde o ambiente de trabalho já ultrapassava níveis toleráveis. O excesso de ruído em São Paulo era agravado pelo barulho provocado conscientemente, como aqueles produzidos por escapamentos abertos de automóveis. Esses procedimentos podiam ser talvez êles mesmos expressões de processos neurotizantes desencadeados pela poluição acústica.
Compilando a literatura, a pesquisadora considerou no seu trabalho as graves consequências da poluição. A morte atraves do ruído não seria repentina, mas gradativa. O perigo maior do ruído não consistia nas suas consequências imediatas, que os moradores de São Paulo já conheciam e sob as quais padecem - nervosismo, insônia, agitação anormal, agressividade e.o; o maior perigo dizia respeito a consequências a longo prazo, mais tardias, mais malignas e danosas, como lesões permanentes do sistema nervoso, do aparelho digestivo, circulatório e endócrino.
Conforme os estudos que compulsou, o limite de tolerância ao ruído seria ultrapassado diáriamente, sem que se tomassem medidas preventivas. Os habitantes de cidades como São Paulo sofriam quotidianamente, desde a madrugada, com o ruído de britadeiras abrindo o asfalto ou do ruído de veículos. Deficiências da audição por parte de populações sujeitas a excessos de ruídos seriam um fato que devia ser considerado com maior atenção. Na medida em que o ruído é prolongado, o órgão auditivo perde sua capacidade de resistência, o que implicaria em distúrbios emotivos aos quais as populações urbanas estariam sujeitas. A insônia também poderia decorrer do barulho imposto diáriamente aos moradores. A interrupção crônica do sono por causa do ruído em excesso poderia provocar efeitos violentos, entre eles distúrbios cardíacos.
Estudos de sinais
Matracas
A pesquisadora, após muitas dificuldades, teve a possibilidade de encontrar e entrevistar um tocador de matraca, um rapaz de 16 anos que vendia bijú em ruas nos bairros do Sumaré e Perdizes. A gravação realizada serviu de base a tentativas de grafia dos toques. Particular atenção foi dada ao aumento e diminuição de intensidade à medida da maior ou menor energia aplicada pelo tocador. O instrumento foi descrito, assim como os modos de segurá-lo e agitá-lo. Considerou-se quando e como é movimentado, verticalmente ou em rotação.
Buzinas
As considerações referentes às buzinas de veículos dirigiram-se sobretudo a seu significado cultural e social. As buzinas, não teriam apenas significado pragmático como sinal de alerta em veículos o que era aceito na legislação do trânsito. O buzinar tinha significados sócio-culturais. Podia-se constatar que a buzina surgia como caracterizadora de determinados veículos, por assim dizer parte de uma personalidade a êle atribuida, comparável com aquelas de bondes e ônibus, diferenciadas e que permitiam reconhecer à distância o meio de transporte. Seria interessante notar que os motoristas possuiam toques individuais, ritmados, toques que se tornavam conhecidos no seu círculo de relações, passando a ser um meio de comunicação. A buzina e o buzinar passavam a pertencer a uma cultura do quotidiano, podendo adquirir uma certa tradicionalidade, uma vez que haviam motoristas que anunciavam a sua passagem a familiares e amigos em determinados horários através de toques de buzina.Jovens procuravam equipar os seus automóveis com acessórios de moda, entre êles determinadas buzinas. Buzinas tinham até há pouco emitido trechos de músicas populares de atualidade, como, entre outros, o início de A namoradinha de um amigo meu de Roberto Carlos.
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