Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo
Universidade de Colonia
ANAIS BRASIL-EUROPA
ESTUDOS CULTURAIS E MUSICOLOGIA EM CONTEXTOS GLOBAIS
ETNOMUSICOLOGIA URBANA
FACULDADE DE MÚSICA E EDUCAÇÃO MUSICAL DO
INSTITUTO MUSICAL DE SÃO PAULO
RECAPITULANDO ESTUDOS:
ESCOLA MARIA JOSÉ, BARRA FUNDA
ESCOLA NOSSA SRA. DO SION, VILA MARIA
YARA REGINA GRASSO
1973
Culturas institucionais e música - Etnomusicologia urbana e Educação - Instituições escolares em contextos de bairros - Escolas particulares marcadas pela imigração - Escolas religiosas de ordens européias - Estudos de caso: Barra Funda e Vila Maria . Cantos escolares e rodas - Diferenças e uniformizações
Culturas institucionais, em particular de escolas, foi tema tratado na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo em 1973. O objetivo era o de considerar em particular instituições escolares sob o aspecto cultural nas suas inserções nos respectivos bairros. Estudos institucionais relacionaram-se com estudos de contextos urbanos e assim com aqueles desenvolvidos em outras áreas.
Esse tema fora tratado no Festival de Outono do movimento Nova Difusão e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia em 1970, quando realizaram-se conferências e concertos em instituições de vários bairros de São Paulo Esses estudos foram desenvolvidos desde 1969 em cooperações com estudos de Geografia Urbana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (FFLC/USP), assim como de sentidos e funções culturais de espaços urbanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).
No Instituto Musical de São Paulo, os estudos foram realizados conjuntamente com o curso de Música na Evolução Urbana de São Paulo. Um foco de atenção desses estudos foi o de diferenças culturais de bairros e de instituições nas suas relações. Escolas e bairros não vizinhos da cidade foram considerados nos seus elos institucionais e pessoais. Vários dos estudantes de Licenciatura já atuavam como professores de escolas, muitas vezes concomitantemente em escolas de diferentes bairros.
Etnomusicologia urbana e Educação
Etnomusicologia como instituída no Instituto Musical de São Paulo foi inovativa e sui generis sob diferentes aspectos. Substituindo em princípio a antiga área de Folclore de cursos de Canto Orfeônico, entendeu-se a serviço das necessidades de educadores que atuavam em contextos marcados por pluralidade sob diferentes aspectos. Os seus alunos provinham de diferentes contextos familiares e bairros, muitos deles eram provenientes de imigrantes europeus e asiáticos, de diferentes países e regiões. Muito mais do que representar um empecilho para a educação musical, essa complexidade devia ser encarada como uma extraordinária possibilidade de enriquecimentos mútuos para educandos e educadores.
No curso de Etnomusicologia, os estudantes deviam receber conhecimentos de contextos e processos culturais em nível global que os possibilitassem a reconhecer e valorizar as expressões culturais de seus alunos. Neles devia ser despertado o interesse pela pesquisa do seu meio de vida e de atuação. Não havia sentido em transmitir aos futuros educadores - como no passado - cantos descontextualizados que pudessem introduzir e aplicar nas suas escolas, marcadas que eram pelo extraordinário dinamismo de interações culturais da metrópole. Prepará-los para difundir cantos há muito propagados e conhecidos não parecia razoável. Não como agentes de difusão de repertórios, mas sim como catalisadores de interações e agentes de difusão de uma nova mentalidade, marcada pelo interesse por diferenças culturais e ultrapassagem de barreiras surgia como principal objetivo.
Instituições escolares em contextos de bairros
Um dos aspectos tratados disse respeito à tomada de consciência por parte dos educadores da cultura da própria instituição em que atuavam e de suas relações com o meio envolvente, com o bairro na sua história e desenvolvimentos, imagens e consciência de seus moradores. Os educadores deviam considerar aqueles que os precederam, as origens e a história da instituição para inscrever-se, em continuidade ou de forma conscientemente contrastante com o passado da própria escola. Esse procedimento devia contribuir também à história dos respectivos bairros e a vivência cultural de seus moradores. Nesses intuitos, tratou-se de forma diferenciada grupos escolares, ginásios e colégios mantidos pelo Estado e escolas particulares.
Escolas particulares marcadas pela imigração
As escolas particulares remontam em geral a iniciativas de seus fundadores, de empreendedores e idealistas movidos por determinados ideais e concepções, possuindo características próprias e uma história que é recordada, mantendo-se uma certa continuidade com as intenções de origem, muitas vezes mantidas por descendentes ou familiares. Essas intenções iniciais podem ter sido marcadas por determinadas concepções educativas e métodos, filosóficas e posicionamentos políticos ou ideológicos.
Vários foram os imigrantes e seus descendentes ou estrangeiros que, por diversas razões, estabeleceram-se no Brasil que se dedicaram ao ensino, fundaram escolas ou marcaram a sua história. Os seus nomes são em muitos casos lembrados na denominação de grupos, ginásios e colégios e, em muitos casos, sua memória celebrada. Esses fundadores, promotores ou professores trouxeram consigo concepções e práticas de seus países e expressões culturais que determinaram ou influenciaram o ensino e a vida escolar.
Algumas escolas passaram a ser frequentadas por descendentes de determinados grupos da sociedade como a de instituições com a maioria de educandos de língua alemã como o Colégio Porto Seguro, a escola alemã da Vila Mariana ou da escola Higienópolis. Eventos escolares nessas instituições incluem em muitos casos apresentações musicais, teatrais e outras atividades que remontam ou se relacionam com tradições dos países de origens de seus fundadores ou professores. Para uma atuação refletida de professores, alunos e pais, assim como para estudos de uma cultura institucional torna-se necessário considerar contextos culturais de origem.
Escolas de ordens religiosas européias
Muitas são as escolas particulares criadas por ordens religiosas, em geral de proveniência européia e assim determinadas pela cultura espiritual das respectivas congregações, de sua história, de tradições quanto a venerações, inserindo-se assim em contextos supra-nacionais. São marcadas pelos contextos das épocas em que surgiram na Europa e de suas relações com escolas da mesma ordem em outros países. Os religiosos transferem-se de um país a outro, trazendo novas experiências e novos aportes. Escolas de ordens cultivam uma fisionomia própria e uma orientação de fundamentação religiosa que as diferenciam de outras, com outras tradições. Uma instituição mantida por Beneditinos adquire outras características do que aquelas criadas por congregações mais recentes, como a dos Salesianos. Muitos monges beneditinos e vários frades franciscanos provieram da Alemanha, foram marcados por desenvolvimentos alemães como a Luta Cultural, grande parte dos padres de Dom Bosco provieram da Itália, tendo sido marcados por questões sociais da época.
Sendo as ordens religiosos em geral fundadas em contexto restaurativo de conventos e da atuação de religiosas e religiosos no século XIX e provenientes de contextos europeus, podem ser consideradas sob o aspecto dos estudos concernentes à transferência de europeus para o Brasil. Assim como os estudos imigratórios, esses religiosos confrontaram-se com a cultura da sociedade que o recebeu, com ela interagindo segundo estratégias de ação e passaram êles próprios por mudanças culturais. Com a mudança de gerações e a integração de religiosos brasileiros nessas ordens, esses processos culturais adquirem novos aspectos.
Com as reformas que se seguiram ao Concílio Vaticano II, muitas dessas ordens deixaram os hábitos que as caracterizavam e permitiam de imediato situá-las em determinados contextos. Em alguns casos, as religiosas ou religiosos passaram a viver isoladamente, sendo que alguns dos representativos edifícios foram abandonados. Essas mudanças colocam dificuldades para a detectação da cultura imaterial que orienta as instituições de ensino. Reconhecê-las, porém, é uma necessidade para o estudo de condicionamentos culturais daqueles assim formados. Um educador que neles atua, deve conhecer os pressupostos que levaram à fundação das instituições e estar consciente quanto às concepções a que servem.
Estudo de caso: Barra Funda e Vila Maria
A estudante Yara Regina Grasso, já atuante como educadora em escolas de dois bairros de São Paulo, uma particular e outra confessional, apresentou um trabalho comparativo quanto às similaridades e diferenças da música escolar. Uma delas foi o Instituto de Educação Maria José, na Barra Funda, outra a Escola Nossa Senhora do Sion, na Vila Maria.
Primeiramente, a atenção foi dirigida à diferença entre os dois bairros. Com base na literatura existente e na memória de moradores, procurou-se traçar o desenvolvimento histórico nas suas relações com a geografia urbana, a sua fisionomia cultural, instituições e transformações. A seguir, considerou-se a origem das duas escolas. No caso do Instituto de Educação Maria José, a atenção foi dirigida a Maria José, cujo nome é mantido desde 1937 na designação da escola e que surge como significativa para estudos da imigração.
Maria José era filha de italianos, moradora do bairro de Higienópolis, conhecida pelo seu idealismo e força empreendedora. A história ou memória da instituição é marcada por um romance que também apresenta elos com a imigração, no caso com Konrad Wessel. Este, mantendo grandes elos de amizade com Maria José, teria transferido para ela o edifício que até então abrigava uma escola originalmente de nome Instituto Príncipe de Nápoles, posteriormente Instituto Zeppegno. A escola salientou-se no início da década de 1960 pela politização de seus alunos. A identidade da escola Mária José tinha também a sua expressão em hino para ela composto.
A escola Nossa Senhora do Sion, na Vila Maria, apresentava um vir-a-ser totalmente distinto. Nascera da intenção de algumas religiosas do Colégio Sion na década de 1940, que, tomando consciência de que o colégio situado no bairro de Higienópolis era frequentado por jovens de círculos sociais mais privilegiados, decidiram atuar em bairros menos favorecidos. Passaram a dar lições na Vila Maria, dando origem ao colégio e à obra São Teodoro, entidade beneficiente voltada ao amparo de crianças de meio social desfavorecido. Vila Maria era um bairro com grande porcentagem de imigrantes portugueses e por luso-brasileiros, assim como de brasileiros de diferentes origens, em particular de grupos sociais em condições mais modestas. Pode-se lembrar, sob o aspecto da música, o significado da Irmandade de São Benedito de descendentes de africanos da Vila Maria, estreitamente relacionada por elos de amizade com Verissimo Augusto Gloria e sua corporação, regente e compositor atuante na Confraria dos Remédios e em muitas cidades do interior. Na Vila Maria teria vivido também o imigrante italiano responsável pelos tocadores de realejos de São Paulo.
Cantos escolares e rodas
A pesquisadora confrontava-se nas suas classes com alunos provenientes desses bairros distantes entre si e marcados por diferenças quanto à sua história e constituição demográfica e sócio-cultural. A sua proposta foi a de comparar cantigas de roda conhecidas nos dois contextos. Para isso, realizou observações, gravações e transcreveu textos e melodias transmitidas pelos seus alunos.
Com grande surprêsa constatou que as mesmas cantigas apresentavam diferenças no cultivo pelas crianças dos dois bairros. Até mesmo o nome de cantos e brinquedos eram conhecidos sob outra denominação. Registrou diferentes versões de cantos como Samba le-lê, A Roseira, Sinh’Aninha, Capelinha de Melão, A Canoa virou, Vamos, maninha, Caranguejo, Carneirinho - carneirão, A gatinha, Entrei na roda, Nesta rua, Anquinhas, Escravos de Jó, Giroflê, Sapo Cururu, Bambalalão, Acordei de madrugada, Ciranda-cirandinha e Teresinha de Jesus.
Diferenças e uniformizações
Essas comparações e as diferentes versões constatadas, trouxeram à consciência de que aquelas difundidas em textos folclóricos e em compêndios educativos representavam escolhas feitas pelos coletadores a partir de uma grande variedade de versões da tradição oral. Utilizadas como modêlos para o ensino, contribuiam a uma uniformização e assim a um empobrecimento. Justamente as diferentes versões, sobretudo de textos, permitiam em muitos casos compreender sentidos que permanecem obscuros em cantos difundidos de forma estereotipada em publicações. Considerar essas diferenças poderia também contribuir a interações entre os próprios alunos, aguçando o interesse mútuo.
(…)