Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo
Universidade de Colonia
ANAIS BRASIL-EUROPA
ESTUDOS CULTURAIS E MUSICOLOGIA EM CONTEXTOS GLOBAIS
CANTADORES NORDESTINOS EM SÃO PAULO
MIGRAÇÕES NA ETNOMUSICOLOGIA
FACULDADE DE MÚSICA E EDUCAÇÃO MUSICAL DO
INSTITUTO MUSICAL DE SÃO PAULO
RECAPITULANDO A PESQUISA
O RECANTO DOS POETAS NO BRÁS - O REPENTE
HELENA DA GLÓRIA MEDEIROS
1973
A migração interna no Brasil foi tema de estudos e pesquisas na área da Etnomusicologia, matéria instituída na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo em 1972. O tratamento do tema baseou-se em estudos anteriores e justificou-se pela orientação da Etnomusicologia introduzida no currículo de cursos de Licenciatura em Educação Musical em substituição ou complementação da matéria Folclore do antigo Canto Orfeônico e da formação de cantores e instrumentistas de conservatórios.
Essa orientação remontava a reflexões encetadas na década de 1960 no âmbito de movimento de renovação de estudos culturais e musicais que levaram à criação do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão. Esse movimento originara-se do reconhecimento de superação de modos de pensar e proceder segundo categorizações de objetos de estudos como aquelas de esferas do erudito e popular, de grupos sócio-culturais ou étnicos através de um direcionamento da atenção a processos.
Essa orientação trouxe à consciência a necessidade de análises de processos culturais decorrentes de imigrações, de interações e mudanças culturais, de assimilação, integração, permanências, diferenciações em situações de diversidade cultural e do papel neles desempenhado pela música. Esses estudos deviam ser conduzidos tanto de perspectivas do contexto sócio-cultural receptor como daquelas dos imigrantes. Não deviam limitar-se à imigração e seus descendentes de proveniência européia ou asiática, mas também considerar a migração interna, sobretudo aquela de migrantes da Bahia e do Nordeste do Brasil que, à procura de melhores condições de trabalho e de vida, deslocavam-se a grandes centros industriais como São Paulo.
O estudo da migração interna levantava outras questões e exigia considerações sob muitos aspectos diversas daquele da imigração européia ou asiática, já em si complexa devido às difentes proveniências de imigrantes. As inserções em processos histórico-culturais, o mesmo idioma, expressões culturais e tradições em comum daqueles provenientes de outras regiões do Brasil, em particular da Bahia e do Nordeste, estabeleciam outras bases para estudos de processos sócio-culturais, de diferenças que se manifestavam na manutenção de expressões culturais, de uma auto-consciência de origens por parte de migrantes e de atitutes discriminatórias da sociedade que os recebia.
Os educadores deviam ser motivados ao estudo desses aportes culturais e à sua consideração na prática de ensino. Na Etnomusicologia deviam receber subsídios para que pudessem reconhecer e valorizar as contribuições culturais dos vários grupos sociais constituintes da complexa sociedade metropolitana, diversidade essa que se refletia nas escolas.
Os educadores deviam ser preparados através de estudos de contextos regionais e de pesquisas de campo a procedimentos refletidos e adequados nas suas atividades educativas, em particular naquelas de escolas de bairros marcados pela presença de migrantes da Bahia e do Nordeste.
Bahia e Nordeste em São Paulo
A vinda de imigrantes da Bahia e do Nordeste do Brasil à procura de melhores condições de trabalho e de vida, intensificada no decorrer da década de 1960, marcou profundamente a cidade de São Paulo sob diferentes aspectos, desencadenado processos que transformaram a fisionomia, a vida social, cultural e mesmo a identidade de vários bairros. A presença nordestina fêz-se sentir em particular na zona Leste da metrópole, não só em bairros afastados, como também em bairros operários próximos ao centro e de antiga história, entre êles o Brás, em particular ao redor da Estação do Norte. A presença de migrantes e seus modos de vida e expressões culturais modificaram contextos, praças e ruas. Música, dança e expressões tradicionais de diferentes regiões do Nordeste passaram a ser cultivadas em pontos de encontro, bares, assim como em praças públicas, também naquelas do centro da capital, como na da Sé ou no largo São Bento.
Essa presença foi sentida por muitos como perturbante, levando a mudanças de imagens e de vivência de espaços, de identidades bairriais, contradizendo visões e sentimentos de paulistanidade. Praças e ruas passaram a ser evitadas. Observadores e estudiosos de mentes mais abertas e progressistas reconheceram porém as possibilidades enriquecedoras que se abriam com essa intensificação da imigração interna. Este foi o caso de pesquisadores de Folclore que se empenhavam na renovação dessa área de estudos como aqueles do Museu de Artes e Técnicas Populares (de Folclore).
Esse museu e na escola a êle vinculada, inseria-se através da pessoa de Rossini Tavares de Lima numa linha de pensamento remontante a Mário de Andrade que, como diretor do Departamento de Cultura, promovera a Missão de Pesquisas Folclóricas ao Nordeste do Brasil, realizada em 1938. O interesse pelo Nordeste e suas expressões culturais marcou os estudos e os trabalhos do museu, mantendo-se cooperações com vários pesquisadores nordestinos.
A Etnomusicologia instituída no Instituto Musical de São Paulo inseria-se em longa tradição de estudos do Nordeste em São Paulo através de Martin Braunwieser, membro da Missão promovida pelo Departamento de Cultura de São Paulo sob Mário de Andrade, responsável por gravações e autor de estudos de tradições musicais nordestinas.
Com a intensa presença nordestina em São Paulo, os pesquisadores passaram a ter novas oportunidades para estudos de suas expressões culturais, de modos de vida, de tradições orais, de música e dança. Para contatos, observações e participações in loco já não se impunha a necessidade de viagens, longas e difíceis, uma vez que o Nordeste, sob muitos aspectos, estava presente na própria metrópole.
Essa imigração, porém, não foi mera transposição do Nordeste para São Paulo, mas inseriu-se em complexos processos culturais de afirmação e ao mesmo tempo de mudanças culturais, marcados por sentimentos de nostalgia, consciência de valor e de desejos de integração e aceitação, assim como pelas interações que também desencaderam mudanças na sociedade predominante. A música foi um dos principais fatores condutores desses processos, Os cantadores nordestinos, o repertório, gêneros, formas lítero-musicais, assim como os seus instrumentos sempre tinham sido objeto de estudos e do ensino na área Folclore, havendo uma considerável literatura a respeito com relatos de pesquisas na Bahia e no Nordeste, pouco porém tinham sido considerados os migrantes que passaram a viver e trabalhar temporariamente ou definitivamente em São Paulo. Cantadores podiam agora ser ouvidos e nas praças e pontos de encontro.
Cantadores nordestinos em São Paulo
Entre os trabalhos de pesquisa realizados no âmbito da Etnomusicologia, salientou-se pela sua excelência o de Helena da Glória Medeiros apresentado para a conclusão de curso em 1973. A partir de observações e entrevistas realizadas em ponto de encontro de cantadores nordestinos no bairro do Brás - o Recanto dos Poetas - a pesquisadora dirigiu a sua atenção ao repente, tratando-o sob outros aspectos do que aqueles que marcavam os estudos na área de folclore.
A pesquisadora divide o seu trabalho em cinco partes. Na sua introdução, parte de considerações sobre a viola e o repente como expressões identificadas como nordestinas. Sabendo-se que eram de proveniência européia, indagava das razões de serem identificadas como expressões do Nordeste. Para tratar dessa questão, dedicou grande parte do seu trabalho à pesquisa temática, linguística e formal da poesia dos repentes.
O trabalho teve como principal objetivo trazer à consciência a existência de um recanto nordestino dentro da Grande São Paulo com os seus violeiros e seus repentes, o Recanto dos Poetas, um bar despretencioso no Brás, onde se reuniam cantadores nordestinos que viviam em São Paulo. Esses nordestinos congregavam-se ao redor dos repentistas em comunhão de pensamentos e sentimentos. Principal motor era a lembrança do Nordeste, o sentir o Nordeste através de um convívio social que se inspirava na litertura de cordel e no tanger da viola.
Esse local constituia um centro de contexto sócio-cultural nordestino no Brás com seus divertimentos próprios, com cantorias em casas de família, possuindo um jornal que circulava em rêde de amigos.
O Recanto dos Poetas
O Recanto dos Poetas fora fundado em 1969 com apoio de Antonio Florentino Valença, pernambucano que se considerava folclorista e representante do Norte. Se, no passado, cantores tinham sido perseguidos pela polícia, vistos como desocupados, muitos deles, ao contrário, se consideravam como profissionais do repente, vivendo de sua cantoria, havendo porém também aqueles que cantavam apenas por prazer. Reuniam-se - sobretudo homens - principalmente nos fins de semana e feriados.
O Recanto dos Poetas podia ser considerado sob diferentes aspectos, todos eles interligados. O principal interesse residieria segundo a pesquisadora na poesia, onde o rítmo era mais elaborado do que na prosa, exigindo o tratamento do seu conteúdo mais reflexões e lógica, o seu processo criador mais atenção. A poesia repentista revelava estar ligada à tradição portuguesa, remetendo às cantigas trovadorescas de amor, de amigos e de mal-dizer, o que poderiam ser vistas como correspondentes, no repente, à poesia de amor, de amigo e de desafio. Também quanto à forma poder-se-ia encontrar vários elos entre o repente e a poesia medieval e da Renascença.
A pesquisadora levantou nomes e dados de alguns dos repentistas: Joaquim Timóteo Filho, pernambucano de Lageto, Davi Martins da Gama, baiano de Santa Sé, Pedro Bertoldo da Torre, parnambucano de Embaúba dos Moços, José Gaspar da Silva, pernambucano de Pesqueira, José Francisco de Souza, de Lagoa Grande, Januário Goncalves, também pernambucano, de Caruarú, Augusto Pereira da Silva, alagoano de Guriatã de Coqueiro.
Valorização da leitura e da erudição
Os repentistas possuiam outros pontos de encontro na cidade, entre êles, no passado, um no largo da Concórdia ou no Folk, bar na ladeira da Memória. Uma preocupação geral era a da leitura. Essa preocupação refletia-se em linhas de pensamento constantes nos desafios. Neles, um cantor procurava sempre denotar mais conhecimentos e sabedoria do que o seu companheiro. Os cantores muitas vezes se muniam com versos e estrofes decorados e que eram frequentemente utilizados. Em geral, os repentes eram poesia de circunstância, motivadas por acontecimentos presentes, não deixando, porém, de apresentar elos formais com poesias de outras épocas e relações temáticas com fatos passados.
O repente
No capítulo dedicado ao repente, a pesquisadora trata de início da sua temática, ou melhor constantes, assim como de abordagens comuns. O desafio, comumente, era o tom mais comum dos repentes, compreendendo a discussão em torno de um assunto. Este, porém, mudava de repente para repente, o que dificultava generalizações.
Entre os assuntos discutidos, três casos foram salientados pela pesquisadora: a veracidade de um fato histórico, acusando-se mutuamente de ignorância; a necessidade de serem pagos pela cantoria, sendo que um cantador pedia dinheiro e o outro defenderia aquele que não queria pagar; a mestria que possuia cada um deles na criação poética.
A pesquisadora tratou desses três casos a partir de linhas de pensamentos comuns nos desafios:
1. Forma Oitava: nas Quebras do sertão entre Zé Francisco e Guriatã de Coqueiro sobre a história de Helena de Troia e da Guerra dos 100 anos;
2. Forma sertelha: no desafio entre Zé Francisco e Zé Aguiar;
3. Forma Martelo agalopado: no desafio entre Oliveira e Zé Ferreira.
A pesquisadora salientou a religiosidade e o misticismo que também se encontram na literatura de cordel e que se manifestavam em sextilhas. Salientou também o saudosismo, lembranças auto-biográficas, saudade pelas coisas simples da vida, assim como certa ânsia de progresso. Presentes eram também louvações do Brasil, expressões de patriotismo, assim como de louvações de fatos históricos. Às vezes, os cantores faziam uma invocação, o que lembraria poemas épicos do século XV.
Os poetas mais pobres de recursos recorriam a contrasensos, a ilogicidades, a fatos não verídicos, isso sem falar nos versos quebrados, no vocabulário repetido, nos trocadilhos pouco significativos e na lentidão da cantoria.
Certo eruditismo podia ser observado tanto no tratamento de assuntos como em citações ocasionais. Tanto menções de romances - como Iracema de José de Alencar - como da mitologia grega puderam ser registrados.
Tratando dos recursos linguísticos e poéticos, a pesquisadora considerou o vocabulário usado, latinismos, neologismos, regionalismos, expressões da gíria, Sobre as formas poéticas, salientou que a sextilha seria a mais usada. Outras formas, como o martelo agalopado, eram menos usadas, talvez por serem de mais difícil concepção.
Especial atenção foi por ela emprestada ao tipo de poesia baseada em estrofes de oito versos, em redondilha maior - oito pés a quadrão ou oito a quadrão. O mais longo desafio que presenciou foi aquele chamado Nas quebradas do sertão - com a última palavra da estrofe sendo sertão. No mote glosado, em geral era um espectador que lançava um mote que era desenvolvido em estrofes de dez versos, em redondilha maior.
Particular interesse foi por ela dado ao quadrão mineiro, formado por estrofes de oito versos em redondilha maior, finalizando com as palavras quadrão mineiro. Também lembrado foi o quadrão alagoano, estruturado em oitavas de sete sílabas em cada verso, sendo que após cada estrofe, um refrão é cantado pelos dois cantadores. O mourão trocano, composto por estrofes de dez versos, finalizava com um refrão cantado pelos dois violeiros. A gemedeira, estruturada em sétimas, de sete sílabas cada verso, caracterizava-se pelo fato do sexto verso ser Ai, ai, ui, ui. A pesquisadora considerou o galope a beira mar, estruturado em geral em décimas, de 11 sílabas cada verso, assim como o martelo agalopado, no aqual as estrofes são décimas, e os versos, decassílabos.
Aspectos das análises musicais
No capítulo dedicado às melodias, rítmos e andamentos, a pesquisadora salientou o predomínio da palavra sobre a melodia. Esta tinha antes características de recitações entoadas. O acompanhamento da viola - que muito se asssemelhava á viola braguesa-, muitas vezes constava de acordes completamente desligados da melodia. Nas duplas observadas, os acordes da viola não tinham qualquer relação com a tonalidade ou com a melodia. Em outras, a viola executada uma melodia semelhante à da voz, mas em outra tonalidade.
A melodia da voz, por sua vez, surgia sempre igual de estrofe para estrofe. Algumas vezes, cada repentista cantava uma melodia diferente. Na sextilha, entre os cantadores observados, verificou-se sempre uma mesma melodia. A melodia era sempre a mesma dentro da mesma cantoria, havendo variações, com aumento ou diminuições, de acordo com as exigências do texto. Por vezes, a melodia mudava completamente dentro de uma mesma cantoria. A melodia mudava sempre quando mudava a forma da poesia, por exemplo, quando os cantadores passavam de uma sextilha para um quadrão, de uma glosa para um sextilha. As melodias não ultrapassavam a atessitura de uma oitava, com frequência de notas rebatidas. Uma constante era o salto descendente de uma quinta ou de uma oitava entre a nota inicial e a nota final das melodias. Quanto aos andamentos, estes variavam de acordo com a inspiração ou ânimo do cantor.
(…)