Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo
Universidade de Colonia
ANAIS BRASIL-EUROPA
ESTUDOS CULTURAIS E MUSICOLOGIA EM CONTEXTOS GLOBAIS
ETNOMUSICOLOGIA URBANA
FACULDADE DE MÚSICA E EDUCAÇÃO MUSICAL DO
INSTITUTO MUSICAL DE SÃO PAULO
RECAPITULANDO ESTUDOS DE
MARIE-CLAIRE HERMANN
1973
Música hebraica na Etnomusicologia e Educação Musical - Significado para desenvolvimentos posteriores - Importância dos estudos para Portugal e Brasil - Questões de orientação e metodologia - Subsídios para procedimentos adequados - Aspectos historiográficos: vagas ou levas - Interações e Diferenciações - Cantos da tradição oral - Registros e transcrições musicais comentados - Todas as manhãs, Martelinho, O mundo rejuvenescerá, Canções de ninar, Tempo novo, Canções femininas, Três Menininhas, O carneiro, Roda roda, Numa cidadezinha, Sarinha, Cantigha sobre escola de rabinos, Kadish, Quando o rabino,
Música na cultura hebraica e na vida dos judeus na sua história marcada trágicas delocações, por êxodos, dispersões, perseguições, expulsões e pelo holocausto no século XX foi um dos complexos temáticos considerados não só a partir da literatura disponível na área da Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical/Artística do Instituto Musical de São Paulo entre 1972 e 1974. O seu tratamento em aulas e pesquisas pôde basear-se em relações com círculos hebraicos de São Paulo no âmbito do ensino e da prática musical, assim como em estudos e eventos do movimento Nova Difusão e de seu Centro de Pesquisas em Musicologia.
Músicos, estudantes e pesquisadores judeus e/ou de ascendência judaica participaram ativamente da Nova Difusão, nos seus estudos e iniciativas. A participação de um desses membros do círculo dirigente do movimento - a instrumentista formada pelo Conservatório Meirelles, intelectual e pesquisadora Marie Claire Hermann - em cursos de Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo possibilitou que nele se considerasse com particular atencão a música na cultura hebraica em São Paulo sob diversos aspectos, possibilitando também a realização de pesquisas sob uma perspectiva de dentro, do interior de comunidades. O trabalho assim desenvolvido foi um dos mais importantes pelos seus resultados da Etnomusicologia então introduzida no Brasil em nível superior em 1972.
Significado para desenvolvimentos posteriores
Os trabalhos realizados no Brasil tiveram prosseguimento em âmbito internacional a partir de 1975. A pesquisa de Marie-Clarie Hermann despertou compreensivelmente extraordinário interesse em círculos musicológicos na Alemanha. Salientou-se sobretudo o significado da constatação e registro de canto entoado no campo de concentração de Treblinka na comunidade Malkinia Górnia na Polonia, um dos mais terríveis dos horrores da Segunda Guerra. Incluiram visitas a institutos, centros culturais e locais significativos da cultura judaica como na sinagoga de judeus portugueses de Amsterdam.
Estudos da mística judaica na Idade Média levados a efeito na década de 1980 prepararam a consideração de suas extensões no mundo extra-europeu em sequência à expulsão de judeus da Península Ibérica. Esses estudos tiveram continuidade no Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa, sendo tratados já na sua inauguração e, a seguir, em simpósios, seminários e aulas, incluindo visitas a Israel e a monumentos na antiga Índia Portuguesa e em outras regiões. Torna-se assim necessário recapitular o início desse desenvolvimento na área da Etnomusicologia em São Paulo e o trabalho então realizado por Marie-Claire Hermann.
Importância dos estudos para Portugal e Brasil
Os judeus e a cultura judaica exigem particular atenção dos estudos históricos e culturais concernentes a Portugal e ao Brasil, também em particular naqueles referentes à música. Descoberto em época marcada pela expulsão de judeus da Península Ibérica e pela cristianização forçada, o Brasil se insere em contextos globais nos quais os judeus e os cristãos novos desempenharam importante papel. Trata-se de uma história marcada por lamentáveis acontecimentos e decorrências, por separações, por mudanças, mas também por permanências religioso-culturais, por manutenção de consciência de pertencimento a uma nação e à sua história.
Nas suas múltiplas contextualizações, inserções em processos e complexas interações a atenção deve ser dirigida tanto à continuidades através dos séculos como às diferenças, às adaptações e integrações, assim como às suas consequências. Devido ao papel desempenhado por Portugal na trágica expulsão e cristianização forçada de judeus na era dos Descobrimentos nas suas implicações na história das regiões extra-européias, o estudo da cultura hebraica impõe-se como necessária tarefa também sob o aspecto musicológico, assim como um dever moral.
Questões de orientação e metodologia
A Etnomusicologia no âmbito dos cursos de Licenciatura em Educação Musical deu prosseguimento, em nível superior, à orientação teórica elaborada no Centro de Pesquisas em Musicologia, Essa orientação era fundamentalmente interdisciplinar, resultante do intuito de superação de formas de pensar e agir marcadas por categorizações de objeto, de delimitações de esferas em diferentes sentidos, do erudito, folclórico e popular, de classes e grupos étnicos, sociais, religiosos, culturais e de minorias. A orientação dirigida a processos ultrapassadores de fronteiras focalizava primordialmente dinâmicas e transformações, mudanças culturais derivadas de encontros, mas também permanências a serviço da auto-consciência e identidade de grupos.
Um dos aspectos metodológicos considerados, disse respeito a questões de periodização, debatidas a partir de estudos de Metodologia da História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo, Uma das posições centrais do movimento Nova Difusão e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia dizia respeito à superação de uma forma de pensar em compartimentos estanques, em fases ou períodos temporais entendidos estaticamente. Uma atenção a processos ultrapassadores de divisões de desenvolvimentos históricos possibilitaria o reconhecimento e a análise mais adequada de transformações e interações.
Subsídios para procedimentos adequados
A Etnomusicologia devia oferecer subsídios aos educadores para que estes estivessem em condições de reconhecer e valorizar expressões culturais do seu próprio meio de vida e de atividades. Para além de aulas expositivas proferidas neste sentido, os estudantes deveriam realizar trabalhos de campo no seu próprio meio envolvente. Deveriam assim tomar consciência de seus próprios condicionamentos e ter a sua sensibilidade aguçada para a complexa diversidade cultural na sociedade.
Nas aulas expositivas da Etnomusicologia, foram considerados estudos referentes á música judaica da literatura musicológica. Ao lado desses estudos e do exame da bibliografia, projetou-se a realização de observações e estudos na grande e diversificada comunidade hebraica de São Paulo.
Estando-se discutindo nos seminários de Etnomusicologia o conceito de aculturação, a atenção devia considerar prioritariamente processos de mudanças culturais e permanências em grupos judaicos em bairros de São Paulo.
Aspectos historiográficos
Um dos trabalhos de pesquisas realizados na área de Etnomusicologia foi aquele de Marie-Claire Hermann sôbre a música na aculturação judaica em São Paulo. Na introdução do seu trabalho, Marie-Claire Hermann lembra que, segundo as últimas estatísticas, viviam em São Paulo ca. de 70.000 judeus. Seria importante considerar os contextos que marcaram as diferentes levas ou vagas na vinda de judeus para o Brasil.
A primeira delas seria aquela da época dos Descobrimentos. Esses judeus ter-se-iam em grande parte integrado na sociedade brasileira, já não mais dela se distinguindo. A pesquisadora lembra que muitos sobrenomes brasileiros pareciam indicar uma origem judaica como Carvalho, Pinheiro, Oliveira, Pereira e outros, o que porém não poderia ser comprovado com certeza. Uma das entrevistadas, de nome Carvalho, tinha a consciência de pertencer a um ramo de família que vive nos Países Baixos e na Espanha e que, no passado, fora obrigada a converter-se ao Cristianismo. Assim, considerava-se como descendente de cristãos novos, professando agora o Protestantismo.
A imigração chamada moderna teria começado há ca. de um século. Numa esquematização, poder-se-ia dividir essa imigração em sete levas.
A primeira teria começado em 1871, com judeus franceses. Como resultado da guerra entre a França e a Alemanha e a anexação por eta da Alsácia e da Lorraine, vários judeus vieram para o Brasil, entre êles, a família Bloch. De modo geral, grandes joalheiros judeus poderiam ser considerados descendentes desses judeus franceses. Este seria o caso de Henri L. Levy, pai dos compositores Luís e Alexandre Levy, grandes personalidades da história da música de São Paulo e do Brasil.
A segunda leva teria tido o seu início nos judeus da África do Norte, da Algéria, Marrocos e Tunísia, que se fixaram sobretudo no Norte do Brasil, em Belém, Manaus, Recife e outras cidades, em parte também em São Paulo. Esses são os sefaradim, sendo que a palavra sfarad significa Espanha. Os sefaradim cultivam o ladino, proveniente do antigo castelhano. Em São Paulo, a quase totalidade dos sefaradim não falava mais o ladino.
A terceira leva teria sido aquela posterior à Primeira Guerra Mundial, proveniente da Europa Oriental. Já ao redor de 1910 teria havido uma imigração de países como Polonia, Lituania, Romenia, Hungria e outros, mas em número relativamente reduzido. Esses e outros que não são sefaradiom são os ashkenazim. Sua língua é o idisch. A autora lembra que à época das Cruzadas, os judeus fugiram da Alemanha e a maior parte foi para a Polonia, conservando o alemão do sul da Alemanha de forma modificada. O idisch era ainda muito usado em São Paulo. Possui uma escrita própria, com caracteres do hebraico, uma gramática elaborada, sendo uma língua muito rica, com vasta literatura, havendo em São Paulo uma vasta biblioteca de livros em idisch. Um dos literatos e poetas mais conhecidos é Itzhak Leibusch Peretz.
A quarta leva veio da Europa Central - Alemanha, Áustria, Checoslováquia - em 1930. A quinta leva seria a dos judeus da Itália dos anos de 1938/398. Uma parte dos judeus italianos é de sefaradim, outra de Ashkenazim. Alguns são originários da Espanha, outros da Áustria e Alemanha. A sexta leva é a de judeus sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, tendo vindo de todas as partes da Europa. A Sétima leva, iniciada em 1956, é proveniente de duas regiões, do Egito, por causa da guerra do Sinai entre o Egito e Israel, da Hungria, devido á guerra da Hungria contra a Rússia.
Em São Paulo, a maioria dos judeus entendia e sabe falar o idisch, sendo porém cada vez mais corrente o uso do português nas famílias, principalmente entre pais e filhos. Seria pequena a parcela da população ortodoxa, a dos judeus que seguem com o máximo de fidelidade os ritos religiosos.
Interações e diferenciações
Seria possível, segundo a pesquisadora, considerar duas ramificações principais na cultura judaica em São Paulo: a primeira, consistiria na cultura judaica propriamente dita, ou seja ao povo judeu da diáspora. É dessa ramificação que o trabalho trata. A segunda consistiria nos elementos do povo de Israel, que começava a adquirir traços culturais distintos do povo judeu da diáspora, a partir mesmo da língua usada, o hebraico. Evidentemente, seria impossível estabelecer uma separação fixa entre essas duas ramificações.
Cantos da tradição oral
Na pesquisa, partiu-se da premissa de que a análise musical representaria um caminho para conhecer a cultura judaica e os processos por que ela passava. De início, a pesquisadora salientava que muitos dos entrevistados conheciam canções populares, mas estas eram pouco cantadas. Os filhos nascidos no Brasil praticamente já não as conheciam. A maior parte dos exemplos coletados fora transmitida por pessoas com idade superior a 40 anos.
Através dessas canções podia-se apreender algo da mentalidade judaica. O povo judeu caracterizar-se-ia por uma grande resignação frente ao sofrimento. Um dos fatores que favorecia a união do povo seria uma esperança perene, o que se manifestava nas músicas. Entre os traços paradoxalmente contrários poder-se-ia mencionar de um lado a humildade com que aceitam os sofrimentos e injustiças, e de outro, o orgulho de pertencerem ao povo judeu. Não seria este orgulho uma arma de defesa contra a ameaça à integridade física do povo?
Outro aspecto digno de ser salientado era o carinho, o respeito e a veneração com que se encara a mãe judia. A sua abnegação, lealdade e submissão eram decantadas em canções. Havia um grande número de canções de ninar que, além de enaltecer a mãe judia, expressavam anseios do povo, paz, amor, bem estar material.
Através das músicas poder-se-ia também conhecer costumes religiosos judaicos, entre outros aqueles referentes à alimentação. Através das canções poder-se-ia também ter contato com os instrumentos judaicos. Outro aspecto importante das análises dizia respeito ás referências ao rabino, geralmente respeitado pela sua cultura. Também em São Paulo o rabino desempenhava uma função de juiz, resolvndo discussões entre negociantes, realizando divórcios e celebrando casamentos. Em São Paulo, muitos recorreriam ainda ao rabino para a solução de conflitos antes de apelarem à justiça.
Registros e transcrições comentados
A pesquisadora gravou, transcreveu e comentou vários cantos obtidos em entrevistas. Entre êlas, o canto Todas as manhãs, entoado por uma senhora em memória dos horrores passados no campo de concentração de Treblinka.
Em Martelinho, trata-se de um canto de trabalho, aquele de um sapateiro pobre que pede a ajuda de Deus para que o cansaço não o vença. O canto Em volta da fogueira é explicado como referente á tranquilidade da noite, com sus estrelas e aos belos sonhos ao dormir, era ainda conhecido por pessoas de idade e por muitos jovens de procedência polonesa ou russa.
O Mundo rejuvenescerá era uma canção pouco conhecida, transmitida por um senhor de idade de proveniência polonesa, consistindo em grito de esperança na renovação do mundo velho, um mundo de amizade, amor, inteligência, fraternidade. Termina com um apelo a todos os homens.
Uma das canções de ninar colhidas fala sobre a sorte daqueles que têm mãe, pois tudo se compra com o dinheiro, menos a mãe. Nesse contexto, a pesquisadora discute o papel da mulher judaica e os ritos por que passa e que eran ainda usuais em São Paulo. Em Balalaica, a autora presume uma origem russa. Trata de dúvidas de um trabalhador que faz perguntas e que são respondidas. Em O tempo novo, tem-se um outro canto de esperança, marcante por seu otimismo.
Entre as canções femininas coletadas, transmite o canto Três menininhas, referentes a três irmãozinhos e sua mãe, repleta de jogos de palavras.
Em O carneiro, a autora salienta o conteúdo cruel e escarnecedor do texto. Em Roda, roda, a autora salienta o tom alegre e singelo de crianças sobre cavalos de um carrossel. No canto Numa cidadezinha, descreve-se uma casinha com telhado verde rodeada por árvores em pequena localidade, onde moram um casal e seus dois filhos. Em Sarinha, decanta-se que Sarinha vai colher flores no bosque, quando encontra um cuco a quem pergunta por quantos anos viverá.
Numa outra canção de ninar, a pesquisadora analisa o seu conteúdo como significativo para estudos da mentalidade do povo judeu na primeira metade do século XX. Tinha sido transmitida por um casal de origem polonesa. Uma cantiga sobre a escola de rabinos durante o inverno, conhecida por jovens e velhos judeus em São Paulo, seria de origem russa ou polonesa.
Entrando na discussão sobre o folclore judaico, a pesquisadora estuda mais uma outra canção de ninar onde mais uma vez se expressa o amor á mãe. O filho é chamado de consolo, coroa e kadish. Kadish é a reza que o filho mais velho faz quando o pai morre. A mãe, que está na Europa, diz para o filho que o seu pai está na América.
Por fim, a pesquisadora trata de um canto - Quando o rabino - no qual vários instrumentos são mencionados: címbalos, tamborins, flautas. Nos seus comentários lembra do significado do violino na música judaica. O tema é o de um rabino que, ficando alegre, despe as vestes do ofício e coloca outras, manda buscar intrumentos e passar a tocar.