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Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo

Universidade de Colonia 

ANAIS BRASIL-EUROPA

ESTUDOS CULTURAIS E MUSICOLOGIA EM CONTEXTOS GLOBAIS

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Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo, professor de Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo de 1972 a 1979, Professor do Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, Alemanha.

ACULTURAÇÃO DE ESPANHÓIS


ETNOMUSICOLOGIA URBANA 


FACULDADE DE MÚSICA E EDUCAÇÃO MUSICAL DO
INSTITUTO MUSICAL DE SÃO PAULO


RECAPITULANDO ESTUDOS DE

NANCY RUBIO



1973


Publicação para estudantes de Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo, 1972

Imigração de espanhóis na Etnomusicologia - Orientação teórica - Espanha/Portugal e estudos imigratórios - Aculturação na Etnomusicologia - Aculturação e Educação Musical - Estudos êmicos de processos culturais - Experiências pessoais da pesquisadora - Problemas de normas em processos aculturativos - Diferenças quanto a costumes e concepções - Estudos de caso: Aguillas, Múrcia; Madrid, Valencia, Mallorca, Jaén  - Setas sevilhanas no Brasil 



Imigração de espanhóis no Brasil foi tema tratado na área de Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. Em fevereiro de 1974, realizou-se viagem de estudos à Espanha. O tema continuou a ser considerado em âmbito internacional a partir da Universidade de Colonia em 1975, onde a área da Etnomusicologia tinha sido marcada pela atuação de Marius Schneider (1903-1982), principal musicólogo alemão com experiência e conhecimentos obtidos em estadia e estudos na Espanha. Obras de Marius Schneider eram conhecidas e estudadas no Brasil. 


Elos com pesquisadores espanhóis foram intensos no desenvolvimento do projeto dedicado ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos em contextos globais. Entre êles deve-se salientar, sobretudo no âmbito dos estudos de música sacra, José López Calo (1922-2020). Entre as várias expressões tradicionais da Espanha salientou-se nos estudos etnomusicológicos referentes à música sacra a saeta, tratada sob aspectos teológicos e musicológicos. Várias viagens de estudos à Espanha foram realizadas e a pesquisa musicológica e cultural de autores espanhóis considerada nas suas relações com pesquisadores portugueses e latino-americanos em seminário universitário realizado n Universidade de Colonia em 2006. Em 2024 realizou-se viagem de estudos a Salamanca, retomando-se temas tratados anteriormente, em particular aqueles relacionados com tradições da Semana Santa.


Orientação teórica


Os estudos foram conduzidos sob orientação teórica desenvolvida desde meados da década de 1960 no âmbito do movimento Nova Difusão e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia. Esse movimento originou-se de uma tomada de consciência da necessidade de renovação de perspectivas dos estudos culturais e musicais. A diversidade étnica, social e cultural de São Paulo exigia uma revisão de posições e modos, de mentalidades e atitudes. Cooperações interdisciplinares e mesmo procedimentos transdisciplinares tornavam-se necessários para a consideração adequada de complexos processos e suas interações em metrópole marcada por imigrantes de diferentes proveniências e migrantes de outras regiões do Brasil. A orientação segundo processos superadores de separações significava não só considerar com maior atenção interrelações entre procedimentos históricos e empíricos na pesquisa, como também entre esferas étnicas, sociais e culturais, entre grupos de imigrantes e a sociedade envolvente.


Os estudos da imigração - e da migração interna - marcaram fundamentalmente a Etnomusicologia instituída em cursos de Licenciatura em Educação Musical em São Paulo. Os educadores deviam adquirir conhecimentos e ter a sensibilidade aguçada para uma valorização adequada da diversidade cultural com que se enfrentavam ou se enfrentariam nas suas atividades educativas. Os muitos grupos de imigrantes e migrantres exigiam porém tratamentos diferenciados. Os pressupostos para a consideração de imigrantes orientais em São Paulo eram outros do que aqueles de imigrantes provenientes de países ocidentais. 


As diferentes épocas e sobretudo as causas e circunstâncias das imigrações deveriam ser consideradas. Um tratamento especial deveria ser concedido aos países latino,s em particular aos ibéricos. O mesmo idioma, os elos históricos e histórico-culturais, em grande parte os mesmos hábitos e costumes exigiam sobretudo que Portugal fosse considerado diferenciadamente.


Os estudos de espanhóis na imigração relacionavam-se estreitamente com aqueles voltados aos portugueses e luso-brasileiros, dirigindo porém a atenção a diferenças e tensões históricas, que marcavam mentalidades e atitudes sócio-psíquicas.  Apesar de toda a proximidade quanto ao idioma, sendo o português falado no Brasil compreensível sem maiores problemas pelos imigrantes, constatavam-se diferenças relevantes quanto a acentos no patrimônio cultural comum, no culto religioso e em expressões consuetudinárias.


Espanha/Portugal e estudos imigratórios


A imigração espanhola no Brasil acentuou-se em fins do século XIX e início do XX. Os imigrantes ibéricos, espanhóis como portugueses, sobretudo de regiões rurais e empobrecidas em época marcada por problemas econômicos, sociais e políticos, emigraram para o Brasil à procura de melhores condições de trabalho e vida. O desenvolvimento agrícola de São Paulo, baseado sobretudo na expansão cafeeira, que necessitava trabalhadores após a supressão da mão de obra escrava, assim como o desenvolvimento industrial e urbano da capital, ofereciam perspectivas promissoras de trabalho. 


Grande parte desses imigrantes fixaram-se em centros urbanos, em particular na cidade de São Paulo, ou para eles se transferiram após estadia em zonas rurais. O estudo cultural dessas imigrações espanholas deve ser diferenciado daquele mais remoto da vinda de espanhóis no passado ou no âmbito das relações entre Portugal e a Espanha na época colonial. Assim como os imigrantes portugueses, que trouxeram expressões culturais, música e danças regionais com outras características de tradições do Brasil também de origem portuguesa transplantadas nos primeiros séculos da história colonial, a imigração espanhola mais recente exige considerações de outros contextos do que aqueles de remoto passado. O estudo de elos entre o Brasil e a Espanha em geral é mais abrangente e complexo, bastando lembrar as muitas décadas da União Pessoal de Portugal e da Espanha entre 1580 e 1640.


Os estudos da imigração dirigem a atenção a processos integrativos dos imigrantes no Brasil, à sua adaptação na nova terra, às mudanças culturais por que passaram, assim como à manutenção de seus modos de vida, de costumes e expressões tradicionais em interações com aquelas da sociedade que os recebeu.


Aculturação na Etnomusicologia


Aculturação foi conceito que marcou debates em áreas de estudo como Etnologia, Sociologia, Psicologia Social, Folclore e Etnomusicologia nos anos de 1960 e 1970 no Brasil. 


O interesse por questões de mudança cultural e, em geral, por processos culturais transformatórios considerados sob diferentes aspectos e conceitos - adaptação, acomodação, integração e.o. - e assim à dinâmica cultural marcou também os estudos voltados à música. O movimento desencadeado em 1965/66 e que levou à criação do Centro de Pesquisas em Musicologia do moviemento Nova Difusão em 1968 foi fundamentalmente dirigido a estudos do papel e da função da música em processos e assim também a mudanças culturais em diferentes contextos.  


O estudo de processos aculturativos - e a discussão do conceito de Aculturação - foi alvo de especial atenção na disciplina Etnomusicologia instituída na Faculdade de Música e Educação Musical/Artística do Instituto Musical de São Paulo a partir de 1972. Esses estudos partiram primordialmente da problemática aculturativa indígena decorrente de confrontos e interações intensificadas com a abertura de estradas no litoral, no Brasil Central e na Amazônia e estudadas com basee em obra de Egon Schaden (1913-1991) de larga difusão e que levaram a observações de situações e decorrências na costa Leste e no Nordeste do Brasil em 1972.


Aculturação e Educação Musical


A atenção foi concomitantemente dirigida em sentidos mais abrangentes às transformações culturais de grupos populacionais de migrantes e seus descendentes provenientes de diferentes origens em São Paulo e cidades do interior do estado. Esse direcionamento da atenção foi determinado pelas finalidades do estudo da Etnomusicologia nas suas relações com a formação e/ou especialização de professores de Educação Musical que atuavam em escolas em contextos metropolitanos e urbanos em geral.


Na formação de professores em cursos de Licenciatura em Educação Musical, que substituia aquele anteriormente de formação em Canto Orfeônico, o objetivo dos estudos era o de fornecer subsídios e preparar os professores para as novas situações demográficas e sócio-culturais decorrentes de processos migratórios, de expansões urbanas, de metropolizações e de novos meios de informação e comunicação. Os estudantes, muitos deles já ativos como professores de música, deviam ser incentivados a dar atenção e valorizar a diversidade cultural de seus alunos e considerá-la na prática de suas aulas e realizações. Essas intenções diferenciavam-se sob muitos aspectos daquelas do antigo Canto Orfeônico.


Na orientação dos estudos, procurou-se incentivar os estudantes a observar e analisar primeiramente o seu próprio meio de relações familiares e rêde de contatos sociais. Esse procedimento tinha como objetivo despertar no pesquisador a consciência de suas próprias inserções em processos culturais e dos condicionamentos que marcavam as suas concepções e perspectivas. A orientação dos estudos culturais à cultura do quotidiano favorecia a consideração de expressões e processos culturais que parecem à primeira vista óbvios e sem maior interesse para a pesquisa. 


Nos estudos de Etnomusicologia, a atenção foi dirigida sobretudo a imigrações e suas interações que determinaram processos culturais e que marcaram a história e o presente da cidade e do Estado de São Paulo. Estudos de processos imigratórios são marcados pela complexidade de relações, impedindo tratamentos generalizantes na Etnomusicologia quanto a aportes de portugueses, italianos, alemães ou de outros países, o de influências indígenas ou africanas próprias de concepções nacionalistas.


Estudos êmicos de processos culturais


A estudante Nancy Rubio, ela própria de ascendência espanhola, de avó proveniente de Granada, escolheu para o desenvolvimento de trabalho relativo a mudanças e permanências culturais de espanhóis em São Paulo. Para isso, partiu de entrevistas com informantes provindos de diferentes partes da Espanha. A pesquisadora, também dançarina e cantora de flamenco, mantinha contatos com grande número de espanhóis e seus descendentes. A sua principal atenção no trabalho de pesquisa foi dada à lúdica, comparando-a com expressões tradicionais do Brasil. 


Experiências pessoais da pesquisadora


No seu trabalho, a pesquisadora revela ter sido marcada por suas experiências e observações na vida profissional, em particular daquelas vivenciadas com um parceiro no cultivo de danças tradicionais espanholas. Esse bailarino, filho de família valenciana, pretendia a princípio seguir a carreira artística, tendo aprendido danças tradicionais espanholas com renomados bailarinos espanhóis atuantes em São Paulo como Henrique Albeniu, Niño de Brenez e Miguel Calbayar. Com êles, aprendeu a dançar passo-doble, tanguillo, farruca, guota, bolero flamenco, fandangos de Nerja, sevillana, sambra, malagueñas, sardenhas, boleros, bulerias e granadinas. Após ter aprendido danças de várias regiões da Espanha, considerava como sendo a mais difícil a farruca


O seu antigo parceiro presentara-se em emissões de televisão com parceiras, em primeiro lugar com a sua irmã, a seguir com a própria pesquisadora, Nancy Rubio. Apresentaram-se em instituições culturais de imigrantes como a Casa de Galicia, a Casa de Aragón, a Casa de España, o Centro Democrático Espanhol, assim como em programas de emissoras como Tupi, Record, Globo e Excelsior. A dupla apresentou-se também em outras cidades, como no Clube Atlético de Santos. Atuando profissionalmente também como cabelereiro, o seu parceiro decidiu abandonar a carreira de bailarino, dedicando-se apenas a seu instituto de beleza, dando como razão de sua decisão o fato de ser a arte da dança espanhola pouco valorizada no Brasil, não proporcionando vantagens financeiras. 


No seu texto, a pesquisadora deixa entrever motivos pessoais desse abandono da dança tradicional espanhola. O seu parceiro mantinha apenas relações de amizade com brasileiros, possuia acentuado interesse por cultura e artes, diferenciando-se no seu comportamento daqueles esperados de um homem na sociedade de imigrantes espanhóis.


Problemas de normas em processos aculturativos


No seu trabalho, a pesquisadora revela problemas resultantes de atitudes e preconceitos, de concepções de virilidade, discriminatórios e racistas em meios da imigração espanhola em São Paulo. Davam preferência a uniões com pessoas de origens ibéricas por possuirem os mesmos costumes. Em vários pontos de seu trabalho menciona explicitamente problemas derivados de concepções de moral e de preconceitos relativamente à orientação sexual. A valorização da masculinidade teria como contrapartida a desqualificação daquele que era visto como maricón. Na sua narrativa, essas concepções e atitudes relativas a comportamentos e ao vigor em homens e mulheres seriam subjacentes a valores de virilidade expressos em tradições como a de embates entre cristãos e mouros ou em bailes espanhóis. Certas profissões como as de cabelereiro seriam vistas como pouco compatíveis com essas expectativas familiares e sociais.


Diferenças quanto a costumes e concepções


Nas suas observações de costumes que poderiam ser considerados como questionáveis, a pesquisadora menciona os velórios. Pessoas de mais idade e provindas da Espanha, procuravam afastar-se e isolar-se, proferindo até mesmo palavras de baixo calão, mesmo na presença do morto. Registra que, quando todos se retiram, os presentes passariam a tecer comentários referentes à moral, algumas vezes acompanhados por altas risadas. 


A pesquisadora considera também costumes relativos a casamentos, usos que podiam ainda ser constatados no Brasil. Segundo a tradição sevilhana, a noiva que possuia poucas posses casava-se de traje negro, a de maiores posses de branco, com mantilha branca. O noivo, se toureiro, vestia-se preto e usaria uma capa preta, calças pretas com faixa larga de cor vermelha. Outro aspecto considerado foi o da valorização do trabalho. As famílias andaluzas no Brasil, em reuniões, costumariamm indagar qual pessoa que trabalhava. Se esta fosse desempregada ou não quisse trabalhar, seria desqualificada como guitano gandu ou guitano senhoron.


Estudos de caso


Origens: Aguillas, Murcia


Em primeiro lugar, a pesquisadora considerou os dados fornecidos por imigrante provindo de Aguillas, pequena cidade na Múrcia e que acalentava o desejo de retornar à terra natal. Esse desejo era movido sobretudo pelas recordações da música em brincadeiras de sua infância. Sob o aspecto psicológico pareceu ser de significado que este informante, como outros, recordassem com nostalgia cantos entoados em caminhos, para a igreja ou escolas, ou seja, relacionados com vias e com deslocamentos. 


Tinha-se conhecimento, em depoimentos de informantes portugueses, que atos realizados no caminho tinham relações com o meio envolvente, com o colher de frutas e com imagens relacionadas com cores e santos venerados. No caso do informante espanhol entrevistado pela pesquisadora, tratava-se da colheita de figos. Através de informações obtidas em Aguillas, a pesquisadora pôde constatar que essas brincadeiras ainda se mantinham e podiam ser explicadas pelos figos em lanches escolares em meios sociais modestos de trabalhadores. Nessas brincadeiras não havia cantos, mas sim recitativos cantarolados referentes à liderança daquele que inicia a brincadeira. 


O entrevistado pela pesquisadora, que trabalhara como transportador de areia e vendedor de peixes, relatou ter aprendido em criança o palmear gitano e o taconeo ou sapateado flamenco, assim como interpretar o sentimento gitano. A sua mulher tinha aprendido desde cedo a tocar palillos, a taconear e a interpretar o canto jondo, considerado como característicamente andaluz. No seu relato, descreveu em pormenores os cantos em roda de mulheres e as expressões jocosas então pronunciadas. Lembrou que, em Jaén, meninas que trabalhavam em serviços caseiros procuravam terminá-los tão rápido quanto possível para poderem ir, com outras, cantar e dançar flamenco, imitando as bailadeiras do povoado. 


Tendo emigrado ao Brasil após o casamento, na procura de melhores condições de vida, o entrevistado e sua mulher foram instruídos durante a viagem de navio sobre costumes e hábitos brasileiros. Em São Paulo, estabeleceram logo elos com outros moradores, sem maiores problemas de comunicação e sem manter contatos com migrantes de outras proveniências. 


Como a pesquisadora salientou no seu trabalho, devido à proximidade cultural, a aculturação espanhola no Brasil diferer sob muitos aspectos daquela de japoneses, chineses, coreanos, sírio-libaneses ou árabes. Na educação familiar, as primeiras gerações procuravam transmitir o espanhol, costumes e sobretudo princípios religiosos e de conduta consuetudinários, de modo que as mudanças culturais ocorriam sobretudo fora de casa e nas gerações já nascidas no Brasil. Escolares de pais espanhóis dominavem tanto o castelhano como o português, sobretudo aqueles que, no caso dos entrevistados, tinham passado tempos na Espanha. Nas suas brincadeiras, mantinham práticas tradicionais espanholas, como o juguete de servilleta com as suas referências à tourada. Em reuniões familiares, cultivava-se música flamenca. O informante tocava guitarra e cantava em gitano, a mulher e os filhos palmeavam e entoavam cantos conhecidos da sua aldeia. Os filhos tocavam palillos e dançavam um por sua vez, dirigindo as atenções para a bailarina com os seus movimentos rápidos de cabeça, busto e golpes de talon ou o bailarino que apresenta um taconeo marcado por expressão de masculinidade. 


Outro entrevistado provinha de Barcelona, o que dirigiu a atenção à permanência e a mudanças de expressões culturais da Catalunha em São Paulo. Também nesse caso tratou-se sobretudo de expressões lúdicas. Entre elas, salientou-se o juguete de guerreiros. Nessa brincadeira, os meninos procuram lugares elevados ou com ruínas, castelos ou covas. Ali representam combates entre cristãos e mouros. Com varas na mão, como espadas, após gritarem adelante hombre, expressão que revela uma valorização de vigor e de poder másculo, dá-se início à encenação com a divisão do grupo em grupos de cristãos e mouros, estes também associados com gitanos. Escondem-se e, após o toque de alarme, dá-se o embate. Nele representa-se o ferimento e a morte de um deles, com expressões dolorosas, sendo que a perda de um dos grupos passa a ser considerada como fracasso. O grupo vencedor, com os seus cavalos de pau, colocam-se em fileira e esperam a ordem de retirada do grupo vencido para receber as honras que cabem a heróis. Se um dos meninos dá sinal de covardia nos embates, é ofendido, colocando-se em dúvida a sua masculinidade. O jogo salienta que um guerreiro espanhol é um homem bravio, pronto às lutas, sendo imperdoável a mostra de fraquezas. 


Essas informações obtidas na entrevista foram discutidas através de comparações com a tradição de Cristãos e Mouros cultivada em várias partes do Brasil e sobre a qual  existem numerosos estudos. Tornou-se possível tratar dessas expressões festivas que marcam o calendário e mesmo a identidade de várias cidades e regiões do Brasil a partir da memória de imigrantes da Catalunha registrada pela pesquisadora. A atenção que a pesquisadora deu à valorização da virilidade abriu perspectivas até então não consideradas nos estudos das tradições brasileiras das representações tradicionais de Cristãos e Mouros.


Origens: Madrid


A esposa do informante, proveniente de Madrid, soube sobretudo transmitir cantos de brincadeiras femininas, como aquela relacionada com o embalar de bonecas: La luna ennamorá. As suas informações permitiram constatar que a as mulheres desempenham papel importante na preservação de costumes e hábitos de espanhóis no Brasil e que estes se manifestam sobretudo na vida doméstica, em particular na alimentação. Como a pesquisadora salienta no seu trabalho, a criança filha de espanhol aprenderia em convívio com outras brasileiras nas escolas, assimilando novas brincadeiras e melodias; em casa, porém, mantinham aquelas aprendidas dos pais.A nova geração já dominava menos o espanhol, embora o compreendesse.


Origens: Valencia


Uma outra entrevista dirigiu a atenção a imigrantes de Valencia. Mantinham o castelhano ou, no caso da mulher, valenciana, o dialeto local. O ambiente doméstico conservava todas as características da cultura quotidiana espanhola, também sob o aspecto musical, não se registrando adaptações ou alterações. O entrevistado fêz questão de salientar que, embora êle e a sua família mantivessem contato com famílias brasileiras, conservavam no seu lar modos de vida segundo moldes espanhóis. 


Várias das músicas registradas pela pesquisadora não revelavam modificações quanto ao texto e música. Um delas, frequentemente entoada pelo entrevistador, acompanhando-se com a guitarra, era o El Emigrante, canção que tematizava a situação emocional daquele que abandonara a sua terra natal. A pesquisadora constatou que muitos espanhóis residentes em São Paulo conheciam esse canto e que, ao cantá-lo ou ao ouví-lo, choravam com saudades da Espanha e do seu destino. A vida na Espanha, embora difícil, permanecia na lembrança desses imigrantes marcada sobretudo pelas muitas festas e divertimentos, por uma intensidade e por uma alegria de vida que não encontravam no Brasil. 


Origens: Mallorca


A pesquisadora entrevistou também imigrantes vindos da ilha de Mallorca. Uma delas, a chamada Império Montenegro, casara-se com um médico proveniente de Madrid no Brasil, doutorado em Medicina pela Faculdade de Medicina em Madrid e atuante no Hospital das Clínicas em São Paulo. Os seus filhos, nascidos e integrados no Brasil, falavam em casa só o castelhano, brincando como os seus pais o faziam na Espanha. Realizavam frequentemente reuniões com canto flamenco e taconeo


Império Montenegro era cantora, afirmando que uma das músicas que interpretava era o passo-doble Novillero, assim como El Beso e o Clabeles de España. À noite, atuava na Boite Bieyalle de São Paulo. As danças e cantos, passo-dobles, eram executados com orquestra e cantados em forna não-guitana, mas sim como boleros e com castanholas. O seu parceiro era Miguel Calbayer (Miguelito) e os guitarristas Paquito Malagueño e Coaydo. Os cantantes eram Antonio Moreno, Nunõ de Brenez e Amália Sanches. Tendo aprendido piano em Palmas de Mallorca, era uma amante da música de Chopin, compositor que passou algum tempo na ilha. Mencionava frequentemente a casa por êle habitada.


Nas entrevistas, Império Montenegro descreveu e elucidou pormenorizadamente os trajes usados por ela e pelo bailarino. As diferenças quanto a trajes na dança de sevillanas foram consideradas. O traje branco, neste caso, teria referências ao povo de Sevilla, que cultivava sobretudo o passo-doble. A cor vermelha, manifestando alegria, vitalidade e saúde, teria sentidos referentes a Madrí. Segundo a sua opinião, Madrid não tinha tantas datas festivas, mas era mais intelectual do que Sevilla. Os guitarristas, trajando roupa beje, com pingentes vermelhos e botas curtas brancas, salto alto e grosso, tocavam - embora na sua maioria não tivessem conhecimentos teóricos de música - realizando improvisações. 


Embora sendo a música sevillana por eles executada de modo improvisado, todo guitarrista conheceria seu modo de tocar e a sua estrutura melódica. A dança de Sevilla consistiria em troca de lugar do bailarino e da bailarina após fazerem uma marcação no lugar.  A segunda vestimenta usada para a dança sevillana foi considerada em pormenores, assim a música e os gestos. A expressão da bailarina é a de gitana - segundo a pesquisadora gitana ou moura - mostrando-se com os cabelos soltos que, ondulados, deviam realçar a sua beleza. O tecido estampado seria também um indicativo do gitano. No passo-doble, o vestido era em tule vermelho - expressando alegria relacionada com o luxo. Os tecidos estampados sugerem sobretudo o meio mais modesto dos pueblos, nas quais as bailarinas se serviriam de trapos estampados. A fisionomia da bailarina demonstraria liberdade e auto-consciência de si.


Origens: Jaén


Antonio Brenez e sua esposa Maria Brenez, com nomes artísticos Ninõ de Brenez e Maruja, que tinham chegado ao Brasil havia oito anos, tinham instruído suas filhas na dança e no canto jondo. As música mantinha o mesmo texto, assim como as mesmas características de estilo e interpretação como na Espanha. Uma de suas filhas, Anita, era casada com o guitarrista Paquito Malagueño, sendo um dos mais renomados guitarristas no Brasil. Dedicava-se exclusivamente à arte guitarrista espanhola e a seu repertório. Exibiam-se para a colonia espanhola residente no Brasil e também para o público em geral. 


Brenez mantinha um repertório antigo, tradicional, cultivado por cantores como Manolo Escobar, Lola Flores, Antonio Gonsales, Juanito Valderrama, Fosforito, Paquito Simon, Juanito Maravilla, Pepe Pinto, Los paquiros, Juanita Reina, Paquito Jerez, Antonita Moreno, Vicente El Granaíno, Pepe Marchena, Adelfa Soto, Pepita Reyes, Manolo Moran, Juan Andrade, Alejandro Vega, Luis Maravilla, Pilar Calvo, Ramon de Loja, José Padilla, José Luccési, Marquina, Carlo Castellano, J. Mostazo, Pio Torrecillas e outros. 


A pesquisadora considerou similaridades quanto ao estilo melismático e lamentoso de Brenez e aquele de renomados cantores como Rafael Farina, Antonio Molina, Ninã de Antequera, Ninã de los Peines, Carmen Sevilla, Guitanela, Angelillo und Carmen Lamaya. Alguns dos cantos eram acompanhados por orquestra, outros com guitarra.  Brenez afirmava ter aprendido o canto melismático flamenco com os gitanos de Vilches em seu pueblo. A sua filha Manolita exibia-se em boates, cantado boleros com o aspecto de antigas canções. Entre as músicas interpretadas encontravam-se também cantos de países como o México que aprendera quando criança: Caminho Verde, Sinceridade, Violetas Imperiais, Rancho Grande, Que murmurem.


Anita, casada com o guitarrista Paquito Malagueño, também atuava na boate, sendo os seus parceiros Luís Bermut, Miguel Calbayer, tendo atuado com Orlando Alvarado e Pepe de Cordoba. Embora brasileira, mantinha a tradição dos pais.


Saetas sevilhanas no Brasil


Antonio Brenez era o único cantor de saetas sevilhans em São Paulo. Durante a entrevista, deu exemplos e elucidações da saeta de Sevilla. Comentou as letras de saetas que interpretava. Salientou não lhe ser permitido entoar saetas no Brasil. Na Espanha, todo o cantor que interpreta saeta não é um simples cantor, mas sim uma pessoa de intensa religiosidade, que sente internamente as profundas emoções despertadas pelas solenidades da Semana Santa. O  canto, melismático, não podia ser ensindo ou aprendido, sendo transmitido por tradição oral. O texto podia ser mais ou menos longo, dependendo a sua duração também dos melismas entoados pelo cantor. Se a melodia fosse deixada para os instrumentos, seria acompanhada com repiques de tambores e clarins, transmitindo a cada ouvinte um sentimento de irremediável arrependimento e tristeza pela crucificação de Jesus. 


Após comentar aspectos musicais e interpretativos da saeta, a pesquisadora tece comparações entre a saeta e o canto de Verônica no Brasil. Na procissão não haveria a figurea da Verônica, mas seria um cantor que expressa a dor entoando a saeta. Tradicionalmente, o canto da Verônica era no Brasil em latim, a da saeta em vernáculo. Em alguns pueblos, o texto era incompreensível, contendo palavras de cunho árabe. 


As reflexões então encetadas na área de Etnomusicologia disseram respeito à propriedade dessas comparações com o canto da Verônica. Paralelos deviam ser considerados antes com a prática das jaculatórias, estas também cantos arremessados do íntimo daquele que as entoa e em vernáculo. Tratar-se-ia de uma comparação quanto a imagens subjacentes à prática, aquela do jaculador, o que arremessa flechas, aqui em sentido metafórico.


A pesquisadora considera os estudos sobre a saeta na literatura religiosa e etnográfica, complementando-os com dados obtidos e com as suas próprias observações. A de Sevilla remontaria segundo a tradição ao século XVI. Segundo a sua vivência e as informações obtidas, todos os dias haveria uma procissão vespertina na Semana Santa e, na Sexta-Feira da Paixão, uma procissão às duas da tarde e outra em horas mais tardias ou de madrugada. Delas participam ca. de 50 irmandades, havendo ca. de 100 Passos. Os andores são levados aos ombros pelos costeleros - com cenas e figuras da Paixão. As imagens, talhadas em madeira por escultores andaluzes, remontavam em parte aos séculos XVI e XVII. À frente vão irmãos e confrades com trajes nazarenos ou de penitência, capa e capuz com máscaras - iluminados por círios. Atrás dos andores iam as bandas de música com clarinetes, clarins e tambores tocando marchas fúnebres especialmente compostas para as procissões. Às entradas de igrejas ouviam-se então as saetas.